Administração Pública: da gestão à governança
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Administração Pública: da gestão à governança
Auditoria de resultados e governança pública
XII: da gestão à governança
Marcos Rehder Batista
A qualidade de uma gestão municipal vai muito além do que indicadores possam apontar, pois sabidamente a realidade varia de acordo com os olhos que observam e as metas dos envolvidos por qualquer política, dos executores aos avaliadores e interessados. Quando se escolhe um critério geral desconsidera-se outros que podem ser mais relevantes para os que realmente são atingidos pelos resultados, e condiciona-se os executores a priorizarem o julgo do avaliador institucional, de modo que muitas vezes as demandas específicas de cada contexto municipal ficam fora de uma abordagem geral, e as particularidades individuais da equipe também: qual a postura dos auditores? como programas estaduais e federais atendem a comunidade? como os funcionários da prefeitura se motivam e se mobilizam para dar informações? quais as prioridades do prefeito eleito? dos vereadores? como as políticas avaliadas (e as não avaliadas) mobilizam a comunidade para usá-las e aprimorá-las? quais os efeitos indiretos de cada projeto?
Definitivamente, nãos e trata de, passados 12 meses compartilhando reflexões sobre os critérios do Índice de Efetividade da Gestão Municipal (IEG-M), diminuir o papel crucial que uma metodologia de avaliação da administração pública ou a qualidade deste índice, mas apontar os resultados não da avaliação em si, mas pensar como esta tecnologia de impacto sociopolítico pode ser usada por toda a comunidade. Muito mais que números e rankings, há nos critérios do IEG-M uma série de princípios de boas práticas de governança, e apontar sobre como promover a internalização destes princípios (gerar pertencimento) e com isso aumentar e qualificar a participação de todos os atores envolvidos não apenas tente a melhorar o resultado na avaliação, como também pode levar a resultados na sociedade.
Na última semana fez um ano de meu primeiro contato com o trabalho do TCE-SP sobre a efetividade da administração dos municípios do Estado. Muitos Tribunais estaduais assumiram este papel de auditoria de resultados, em todas as regiões do Brasil, de modo que tanto os resultados como a própria forma de averiguar os dados variou muito: cada TCE tem sua realidade, assim como cada estado, e mesmo dentro destes, municípios com diferentes condições e problemas. Por isso, não se pode falar do IEG-M apenas pelas suas características técnicas.
Aliás, este entendimento de que cada instrumento de política pública pode ser entendido como uma inovação, como conjunto de idéias de vários atores que gera como conseqüências novas necessidades, vem mesmo antes de se adotar o índice dos Tribunais de Contas como padrão de boas práticas. Primeiro introduziu-se para quê ele foi construído e como foi disponibilizado de São Paulo para todo o país, passando por uma contextualização de como a efetividade (os resultados) tornou-se uma nova agenda para estes órgãos de auditoria externa pública (além de apenas avaliar conformidade com as leis), concluindo-se esta fase preparatória situando-se onde a coordenação dos agentes envolvidos na implementação de uma política pública (a governança) entra na avaliação dos resultados. Só após estes apontamentos conjunturais e metodológicos, que ultrapassam a racionalidade burocrática da Nova Gestão Pública à caminho da Nova Governança Pública (Osborne, 2006; Osborne et al, 2016; Kaufmann et al, 2010), que foram esboçadas avaliações preliminares sobre planejamento, controle fiscal, educação, saúde, meio ambiente, defesa pública e planejamento urbano e, finalmente, uso de tecnologias digitais na administração dos municípios, sempre relacionando estes que são as 7 áreas abordadas pelo IEG-M com respectivos estudos acadêmicos setoriais conceituados.
Recorrer a estes diagnósticos setoriais publicados em periódicos acadêmicos ou em importantes núcleos de pesquisa naturalmente ajudou a uma melhor compreensão sobre o que as questões respondem e a relevância de cada questão abordada, inclusive quais as conseqüências indiretas em se atingir os objetivos propostos pelos TCE’s. Como esta investigação começou ao se ver uma dificuldade eleitoral a ser enfrentada pelos candidatos defensores de boas práticas de gestão nas Eleições de 2020, desde então foi feito contato com professores da Unicamp, USP, FGV, Insper, PUC’s, Mackenzie, FAAP, Unesp, Ufscar, Unifesp e alguns ligados ao IPEA, Instituto Rui Barbosa (IRB), TCE-SP, TCE-MG, TCE-PR, Associação Comunitas, Fundação Konrad Adenauer e Oficina Municipal, tal que aproximadamente 70 deram retornos constantes quanto ao conteúdo. Também se dialogou com deputados, prefeitos e vereadores (e seus chefes de gabinete), algumas lideranças fora de exercício de mandato e membros dos Tribunais de Contas, compondo uma lista de mais de 100 interlocutores.
Um texto para balanço deste conjunto de esboços desenvolvidos deve ser útil tanto para delinear uma agenda de pesquisa o mais consistente possível quanto, principalmente, contribuir na administração direta de prefeituras. Por este motivo, a sequência do artigo tratará i) da relação entre o IEG-M e os atores envolvidos (na auditoria, no poder público municipal e comunidade), ii) a mudança de paradigma na administração pública para assimilar que os resultados dependem também da forma com que todos os atores são envolvidos (da gestão rumo a governança), iii) sobre como as políticas públicas podem ser vistas como inovação e, finalmente, iv) direcionando questões que deverão guiar os rumos futuros desta agenda de pesquisa.
i) Um olho no peixe, outro nos gatos
É preciso reconhecer que, apesar de partir da análise de governança de Elinor Ostrom, onde recursos de uso comum dependem da cooperação dos envolvidos para que não se esgotem (Ostrom, 2005, Osborne et al, 2016; Alford, 2014), prestigiou-se a apresentação das condições onde a interação ocorre (problemas a serem resolvidos e recursos para se resolver) e não como os atores usaram o IEG-M em cooperação. Olhou-se prioritariamente para “o peixe” e para o tanque (o índice e os TCE’s) e supôs-se “como os gatos se geralmente se comportam” a partir de pesquisas setoriais. Dentre estes “felinos”, podemos dizer que os que mais diretamente estão envolvidos neste processo de avaliação são poder público municipal e auditores (que participam da accountability horizontal, avaliação da gestão pública feita por outro órgão público), além dos setores organizados da comunidade em cada comunidade (que fazem a accountability vertical, da sociedade em relação ao poder público): cada um ao seu modo, são estes que estão de olho (sobre accountability vetical e horizontal ver O’Donnell, 1991, 1998; Fernandes et. al, 2018). Mesmo ainda sem avaliar dados empíricos diretamente relacionados à implementação e execução desta política de accountability.
O protagonismo de instrumentos de avaliação científica da de eficácia, eficiência e efetividade do setor público, utilizando modelos baseados nos usados pelo setor privado, pressupõe que alguns resultados da administração como um todo serão priorizados em detrimento de todos, uma seletividade informacional inerente à qualquer construção de índice (Sen, 2000; Pollitt, 2011, 2016). No caso do IEG-M, foram priorizadas informações sobre a efetividade em implementar padrões institucionais exigidos em lei em vários setores, como conselhos municipais, legislação de parcelamento do solo, capacitação de capital humano, uso de recursos tecnológicos, critérios de contratação; resultados finalísticos também constam, como matrículas no ensino fundamental e ocorrências atendidas pela defesa pública, mas predominam as questões aderentes à atividade fim dos Tribunais. Se por um lado questões como desenvolvimento socioeconômico praticamente não são tratadas, por outro construiu-se um índice de efetividade institucional inédito no país, o que por si só torna o IEG-M um indicador precioso, que pode ser correlacionado com outros, como os índices da FIRJAN, IDHM e IDEB. E como qualquer outro instrumento de avaliação, tende a deparar-se com o que ficou conhecido na literatura sobre administração pública como “Paradoxo do desempenho”.
Segundo Christopher Pollitt, os indicadores avaliam se os objetivos do formulador das políticas públicas, na lógica com que ele pensa, e desconsideram outros impactos, outras motivações, as chamadas “lógicas alternativas” (Pollitt, 2016), os outros objetivos que movem os vários atores envolvidos na administração pública, sobretudo burocratas e políticos. Esta disparidade entre as lógicas de motivações promovem disfunções que vão desde fraudes no preenchimento das informações até uso meramente eleitoral das informações (sem uso dos resultados para aprendizagem pessoal e aprimoramento do sistema). Estas disfunções provocadas pelas avaliações racionais são chamadas de Paradoxo no Desempenho. O autor enumera 8 comportamentos que desencadeiam o Paradoxo:
1.
Synecdoche: focar nos
critérios de avaliação e não dar atenção para outras demandas de um determinado
serviço
2.
Threshold effects (limite):
quando se atinge uma meta e não se esforça para melhorar mais
3.
Rachet effects (raquete): evitar aumentar muito para não ser cobrado mais ainda no
próximo ano
4.
Definitional drift (imprecisão de definição): classificar doente de Covid como Crise
respiratória aguda grave
5.
Logic of escalation (Lógica da escala): disputa entre critérios, de acordo com a
conveniência, quando um indicador passa a ser usado como instrumento de
controle, fonte de incentivos e punições
6.
Performance paradox (Paradoxo do desempenho): a rotinização das lógicas alternativas divide
desempenho aferido de desempenho real, exigindo quebra de rotina para impedir
que os agentes combinem o jogo (prisioneiro)
7.
Cheating (Traição): quebra
deliberada das regras, diferente das anteriores, aqui é burlar mesmo
8. Symbolic
use of information: uso meramente
público das informações para fins eleitorais ou vantagens pessoais, e não
aprendizagem ou aprimoramento
Como pode ser observado, as 6 primeiras lógicas tratam de estratégias de adequação dos agentes aos contextos e aos critérios em busca de vantagens pessoais, umas sobre acomodações em relação aos critérios (1, 2 e 3) e outras na elaboração dos critérios, quanto à conveniência do que ser avaliado ou não (3 e 4), todas desencadeando no Paradoxo (6). Já as duas últimas lógicas abordam quando a avaliação não é feita de uma forma honesta (7), havendo fraude nas informações ou atitude imprópria do auditor ou do auditado, como chantagem ou assédio moral, ou o uso meramente simbólico dos resultados (8), para promoção de funcionários ou exploração político-eleitoral, sem que sirvam para aprendizagem ou aprimoramento.
A questão do aprimoramento e do surgimento de novos projetos de políticas públicas dependem em muito de se criar um ambiente saudável entre os atores envolvidos, para que estes saibam aproveitar o melhor possível as informações de auditorias de resultado. Tanto para o aperfeiçoamento dos projetos quanto para o melhor uso possível destes, os indicadores precisam serem compreendidos em seus critérios, pois eles em si são projetos de políticas públicas, inovações gerenciais. Sendo assim, vale muito tecer algumas palavras sobre como entendê-las como inovação, tanto como coisas novas como em seu processo de apropriação e na cooperação que exigem entre os atores que a fazem como recurso de uso comum, conforme foi adiantado na origem deste estudo.
ii) Da NGP à NGP: da gestão à governança da inovação gerencial
As transformações na administração pública iniciadas com a chamada Nova Gestão Pública - NGP (New Public Management – NPM), que incorporavam o instrumentalismo e a austeridade do setor privado (“G” de gestão), foram seguidas pelo que convencionou-se chamar de Nova Governança Pública (New Public Governance - NPG), que buscava dar conta não apenas dos resultados mas de como estes impactavam nos diversos atores envolvidos, a governança (Osborne, 2006; Osborne e Strokosch, 2013; Osborne et al, 2016; Pollitt, 2011, 2011b, 2016; Cavalcante, 2018): devido à evidente confusão na tradução, estamos falando de 2 “G’s”, e é importante sublinhar que na sequência do texto o “G” de NGP refere-se à “governança”.
Considerando que no Brasil o legislativo tem papel decisivo na implementação de qualquer projeto público, não é possível pensar como se dá este processo sem admitir o protagonismo da governança das forças em embate numa política de coalizão, tendendo à estabilização (Freitas e Silva, 2019), que aponta para o constante risco do Paradoxo do Desempenho. Sendo assim torna-se fundamental incorporar parâmetros que orientem como é possível uma inovação institucional acarretar em iniciativas dos atores que resultem nos impactos desejados (Mahoney e Thelen, 2009; Freitas e Silva, 2019). Logo, a articulação entre inovação e governança ganha uma relevância especial no espectro político.
A inovação no setor público pode ser pensada a partir de três pilares(Bekker et al, 2011): a New Public Management, que distanciou burocracia estatal e sociedade; a Governança, que buscou a reaproximação e; o uso das TIC’s. Em especial, estes dois últimos acentuaram a participação de atores que não fazem parte nem da implementação nem da auditoria externa, tal que iniciativas inovadoras e alternativas de aprimoramento surgem por todos os lados e necessitam de boas instituições, capazes de viabilizar a apropriação coletiva (Osborne, 2018; Pollitt, 2011b; Alford, 2014; Bekkers et al, 2011): em outras palavras, promover governança.
Esta ampliação dos atores, que pode até acentuar o Paradoxo do Desempenho caso não se conceba como uma determinada política pode ser de uso comum, pode acarretar em competição sem cooperação. Por isso, autores como Stephen Osborne (Osborne, 2006; Osborne e Strokosch, 2013; Osborne et al, 2016) e John Alford (Alford, 2014) resgatam o trabalho de Elinor Ostrom como origem da NGP. Ela foi Nobel de Economia em 2009, e desde os anos 1970 refletiu sobre quais regras são fundamentais para organizar a competição por um determinado recurso de modo a levar à uma cooperação; e foi a principal orientação do presente projeto de pesquisa desde sua origem, iniciado para orientar como candidaturas podem agregar atores a partir de seus programas de governo nas eleições de 2020. A partir dos anos 1990, Ostrom pensou a análise da governança de recursos de uso comum (desde SA’s até sistemas públicos de saúde) em três dimensões, i) normas, ii) comunidade e iii) propriedade dos recursos, e os conceitos de sua Institutional Analysis and Development (IAD) são bastante intercambiáveis com os princípios de governança pública atualmente usados, conforme mostra o quadro abaixo:
IAD (Ostrom, 2005) |
Governança Pública (Kaufmann, 2010) |
Normas |
Força da lei |
Controle da corrupção |
|
Comunidade Envolvida |
Voz e prestação de contas: acesso e legitimidade |
Sustentabilidade política |
|
Aspectos econômicos do recurso |
Efetividade Governamental: eficiência, eficácia e efetividade |
Regulação Econômica |
Como pode ser observado ao longo dos 11 esboços elaborados antes deste último, toda esta investigação preliminar pautou-se por estes princípios, de modo que já apontou para algumas questões aprofundadas neste texto final. A accountability horinzontal, focada, sobretudo, na conformidade com a lei, é tratada nos princípios de governança referentes às normas. A governança direta dos atores (accountability vertical), que permite participação nas elaborações e envolvimento no uso das políticas públicas, é tratada aos e abordar a comunidade como um todo enquanto elemento fundamental na práxis das políticas. Por fim, tem-se que a efetividade governamental, junto com seus impactos econômicos, é vista em conjunto com os demais elementos, o que pode evitar os fatores que levam ao perigoso “Paradoxo”. Em suma, estas foram as balizas a partir das quais pode-se olhar para as realidades locais no intuito de que as políticas sejam melhor implementadas e aproveitadas por todos os envolvidos, das lideranças políticas à população; também, em que dinâmica os indicadores e seus critérios podem melhor serem usados no aprimoramento da administração pública.
iii) Conclusões preliminares às preliminares das conclusões
Como foi exposto inúmeras vezes, estes 12 textos foram iniciativas exploratórias para se pensar sobre o melhor uso possível do IEG-M pelas comunidades locais como instrumento de aprendizagem de boas práticas de administração pública, tanto quanto à efetividade governamental quanto para o justo uso político de atores políticos que se preocupam com estes cuidados. Partiu-se de dilemas concretos, sobretudo de municípios pequenos, a partir da experiência pessoal do autor, que, por estar construindo uma trajetória acadêmica, recorreu à referenciais científicos para problematizar e aprofundar nas questões e buscar soluções. Por isso, a gratidão às instituições citadas no quinto parágrafo deste escrito final da série, pelos e-mails, mensagens, telefonemas e conversas pessoais (me plataformas virtuais ou mesmo cafés). Foram bem mais que incentivo, foi um privilégio de uma orientação múltipla.
Posso como preliminares das conclusões buscadas pelo projeto partir de agora, a difusão desta agenda de pesquisa deverá ocorrer de duas formas: pelos meios acadêmicos tradicionais (periódicos especializados, congressos, encontros, etc) e na atuação direta com órgãos administrativos (poderes executivo, legislativo e órgãos de auditoria externa pública), além de entidades voltadas às boas práticas de administração pública. No meio acadêmico, o enfoque deve ser a abordagem geral e menos estudos setoriais, cujas publicações preferencialmente acontecerão junto com parceiros de pesquisa que já vém contribuindo com os trabalhos; enquanto nos órgãos administrativos e entidades tenderá para uma orientação em programas de trabalho estruturados, em diálogos já iniciados.
Mais uma vez, obrigado pela interlocução, pelo incentivo, orientação e abertura
Marcos Rehder Batista, sociólogo, doutorando em Desenvolvimento Econômico no Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do NEA+/Unicamp e GVceapg/FGV e-mail: marcosrehder@gmail.com
Link com os esboços já publicados desta série sobre “Auditoria de resultados e governança pública”:
https://rbsustentabilidade40.blogspot.com/2021/01/o-iegm-e-transformacao-sustentavel-nos.html
v) Referências
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