Auditoria de resultados e governança pública VII: i-Saúde
Auditoria de
resultados e governança pública VII: i-Saúde
O funcionamento do SUS
definitivamente trata do serviço público que mais tem influência na política
local, elege vereadores, geralmente o principal alvo da oposição (afinal, trata
da morte e da dor, fácil sensibilizar a população). Existem evidências de que o
aumento no gasto com saúde na medida em que se aproximam as eleições tem papel
fundamental nas reeleições (Silva Junior e Silva, 2020; Carvalho, 2013),
sobretudo em administrações mais vinculadas à demandas populares,
principalmente em regiões com maior vulnerabilidade social (Gomes et al, 2018).
Se na educação os projetos se perdem em querelas ideológicas, na saúde são
rinhas de valores e votos.
Nesta pandemia que continua nos assombrando veio à tona algo não muito
comum, debates públicos sobre quais procedimentos tomar, quais tratamentos,
adquirindo uma verve política incomum, pois o normal é cobrar-se atendimento,
exames, medicamentos indicados pelos médicos não se discutir eficácia. Esta
segurança em relação à autoridade médica, que de perto nem de longe possui
tantas unanimidades, pode ter funcionado como um véu, uma torre de marfim, que
permitiu concentrar as atenções no aprimoramento do sistema de atendimento, nos
oferecendo um modelo fantástico de organização de políticas públicas raro no
mundo, sempre lançando mão de parceiros privados, e deixo claro desde já que
não será possível nem chegar perto da sofisticação deste sistema neste esboço;
teremos apenas pequenas noções. O SUS foi emulado como modelo para outras
políticas setoriais, como desenvolvimento urbano e assistência social (Arretche
et al, 2019).
Existindo tantos conflitos latentes estruturais e sistêmicos nesta
área, e mesmo assim o SUS sendo a tábua de salvação num momento crítico como o
que vivemos, reforço que objetivo aqui é apenas trazer um desenho do SUS e uma alternativo
para avaliar este sistema nos municípios. Sendo assim, a sequência desta
exposição sobre saúde pública no IEG-M seguirá com algumas palavras a acerca de
ii) alguns detalhes sobre a história da saúde pública no Brasil, iii) como as
publicações do IEG-M concebem o i-Saúde e, por fim, iv) como os critérios de
avaliação do índice se enquadram nos 6 tópicos de análise da governança pública
que estamos usando nesta série.
ii História da
saúde pública
Com todas as necessidades de
aprimoramento normais em um sistema que dá conta de um território tão desigual
e que opera em um dos setores mais complexos da economia, envolvendo escala,
inovação de fronteira e bem estar, o SUS coloca o Brasil na vanguarda no
cumprimento dos princípios universais dos Direitos Humanos e, pelo menos no que
tange a saúde, próximos das expectativas da Agenda 2030. Todavia, a partir de
2016 muito de sua sustentabilidade está sob ameaça, com a determinação e um
teto de gastos aquém do esperado pelos 20 anos seguintes, além de estar na mira
do atual Governo Federal (Castro et al, 2019). A pandemia pode ter freado os
retrocessos, mas o projeto era sim o enfraquecimento tanto da capacidade quanto
da sofisticação do sistema de governança, extremamente democrático, diverso
quanto à abrangência do que atende, e versátil em sua capacidade de articular
agentes privados fornecedores de insumos e serviços.
Apesar de algumas iniciativas
esparsas como campanhas locais de vacinação, pode-se dizer que a saúde enquanto
projeto de políticas públicas começou em 1923, com a Lei Elói Chaves, que
institui um serviço público no setor vinculado ao sistema previdenciário. Antes
disso, haviam sim iniciativas filantrópicas, que atendiam a população nos
municípios mais desenvolvidos do país, de forma semelhante ao que acontece nos
Estados Unidos e de onde vieram a infinidade de Santas Casas que hoje atuam
como parceiros privados do sistema público (Carvalho, 2013). Nos anos 1930
houve a tentativa da implementação de uma política nacional, mas ela ganhou
vigor apenas em 1963, na 3ª Conferência Nacional de Saúde, nas vésperas do
golpe militar, que infelizmente freou a ambiciosa proposta sanitarista.
Em 1966 foi criado o INPS, que
incluía a saúde pública e novamente vinculava o vinculo entre atendimento de
saúde e política previdenciária, aprimorada com a criação do INAMPS, que
acentuou a primazia na contratação do setor privado por parte do poder público
no atendimento sanitário à população. Por outro lado, no mesmo período, uma série
de iniciativas de prefeitos progressistas eleitos a partir de 1976 passou a
implementar serviços municipais de saúde, o que já vinha acontecendo antes da
ditadura, mas foi freado (Feliciello et al, 2016; Menicucci, 2014), em
processos de base que ajudaram a legitimar lideranças democráticas como Brizola
e Montouro em 1982. Estas iniciativas locais foram integradas ao INAMPS ao
longo dos anos 1980, com a criação dos conselhos comunitários de saúde nas
Ações Integradas de Saúde (AIS).
Com a redemocratização e a
constituição de 1988 e o direcionamento constitucional para uma saúde pública
que inclua agentes públicos e privados, em 1990 saiu a Lei Orgânica da Saúde,
com a incorporação do INAMPS às demais iniciativas de atendimento em um único
sistema dentro do Ministério da Saúde, o Sistema Único de Saúde. Ele englobou
uma cadeia que acompanha a estrutura federativa da União aos municípios
organizados em Diretorias Regionais, e provavelmente é a mais bem estruturada
cadeia de participação e governança do país, envolvendo todas as esferas da
federação com espaços para executivo e legislativo, participação da sociedade
civil e da iniciativa privada. Em outras palavras, pode ser o modelo de análise
para a relação entre democracia, Welfare State e incentivo à iniciativa privada
tão cobrada pelos liberais – inclusive, esta relação com o setor provado pode
ser visto como o grande trunfo para garantir pressão suficiente para que não se
desmanche o SUS, modelo de governança que poderia ser copiado para todas as políticas
públicas.
Espera-se encontrar nos
critérios de avaliação do i-Saúde todas estas dimensões: i) União, estados e
municípios; público e privado (SOBRETUDO, NOS CRITÉRIOS DE CONTRATAÇÃO);
participação civil. Tem-se consciência da extrema simplificação feita aqui
sobre o processo de formação do SUS e suas características. Segue a diante uma
síntese do foco central do i-Saúde no Índice de Efetividade da Gestão Municipal
e, por fim, como seus critérios podem ser arranjados dentro do framework de
governança pública do Banco Mundial.
iii) Como o
IEG-M concebe o i-Saúde
Assim como os demais indicadores que compõem o IEG-M,
o i-Saúde abarca as incumbências da administração municipal, sem ultrapassar
suas atribuições legais, especificamente, à atenção básica de saúde (TCE SP,
2014; IRB, 2016). Também são levados em conta “Equipe Saúde da Família,
Conselho Municipal da Saúde, atendimento à população para tratamento de doenças
como tuberculose, hanseníase e cobertura das campanhas de vacinação e de orientação
à população.” (TCE SP, 2015, p. 9). Ou seja, não se está falando em exames de
alta tecnologia ou profissionais médicos de especialidades, que muitas vezes
são oferecidos em um município só para todos os demais de uma região.
Ou
seja, em sua definição conceitual o i-Saúde daria conta do atendimento básico e
da participação do cidadão no processo, abarcando as características
institucionais de como define-se o que e será oferecido e uma avalição do que é
oferecido. Aparentemente, não se fala a respeito da contratualização provada
dos serviços, e, assim como no caso da educação, os gastos em saúde não são
avaliados como meios de indução e estímulo do desenvolvimento e geração de
oportunidades. Se por um lado é um cuidado sobre serviços essenciais, por
outro, está-se falando de mais de 1/3 dos gastos públicos (educação e saúde),
tal que encontrar formas saudáveis deste gasto também promover diretamente o
desenvolvimento de setores específicos é uma condição urgente dada a atual
crise econômica, principalmente por tratar-se de um setor que envolve desde
serviços não especializados até tecnologia de ponta.
iv) Critério de
governança pública no i-Saúde
Seguindo os critérios
governança pública já usados para descrever os diferentes indicadores do IEG-M,
vale recordar as 6 dimensões apontadas pelo Banco Mundial (Kaufmann
et al, 2010; Cruz e Marques, 2013):
1.
força da lei:
conformidade com regras e controle da sociedade sobre este processo
2.
voz e prestação de contas: sociedade
avalia resultados, tributação e investimentos
3.
controle da corrupção:
capacidade institucional de julgar compromisso dos agentes
4.
estabilidade política:
mecanismos de resiliência e adaptação
5.
efetividade governamental:
capacidade de implementar políticas de realizar resultados
6.
regulação normativa econômica: modo com
que se relaciona com parceiros privados
A
seguir trago algumas palavras sobre como e quais questões do i-Saúde tratam
cada um destes 6 itens, mencionando os temas em suas respectivas questões.
Força da
lei
Neste quesito avalia-se a
conformidade e a forma com que regulamentos e regras norteiam administração
municipal no que se refere à saúde. Pergunta-se sobre alvarás de bombeiros (Q4)
e vigilância sanitária (Q5), cumprimento de horário por parte dos médicos (Q13)
e se existem mecanismos de controle sobre este cumprimento como sensor
biométrico (Q17). Existem também questões sobre cumprimento do gasto mínimo
para a saúde previsto em lei federal (Q49 e Q53), e se há um Plano Municipal de
Saúde atualizado para articular todas as exigências (Q34) e um protocolo para
especialidades (Q60). Ou seja, trata de condições físicas, grau de exigência
sobre os médicos, mínimo constitucional e se existe um plano para organizar
esta política. Fala-se pouco sobre leis e programas nacionais relacionados à
saúde pública, talvez porque eles variam muito no tempo e no espaço.
Voz e
prestação de contas
Aqui trata-se da accountability
e do acesso à informação e empoderamento dos indivíduos, que na verdade fica
bastante a desejar. Tratam apenas se divulgam de antemão a escala de trabalho
nas unidades de saúde (Q3), para que se possa cobrar, e se o município implantou
o Sistema Nacional de Gestão da Assistência Farmacêutica (Q40). Ou seja,
cobra-se muito pouca transparência deste setor onde se gasta tanto com grande
industrias farmacêuticas e onde os profissionais ganham tão acima da média. Há
uma infinidade de comprar e tipos de produtos e serviços contratados com o dinheiro
público, e precisa-se cobrar mais não apenas sobre a lisura, mas também quanto à
qualidade destes gastos, de um modo totalmente transparente para a população.
Em educação, por exemplo, pergunta-se até sobre compra e entrega de materiais
didáticos, apontando e enumerando até uma lista mínima de material que precisa ser
entregue.
Controle
da corrupção
Mais uma
vez, o foco do controle está sobre a atividade dos médicos, e não da relação
com a indústria farmacêutica ou mesmo na contratualização de exames e procedimentos,
como pagamento de horas extras (Q31) e controle do tempo mínimo de atendimento
(Q50). Tudo bem que existe uma pergunta sobre se usa-se uma conta específica para
movimentar os recursos do Fundo Municipal (Q39), o que ajuda na investigação
sobre o que se compra e de quem, mas nada sobre se o que é comprado ou
contratado é entre ou feito. Também nada se fala sobre auditorias.
Estabilidade
política
Aqui, basicamente se quer saber
se há um controle de informações sobre procedimentos para ser possível um
planejamento e se há participação ativa de meios institucionais de participação
em conselhos, por onde a sociedade participa na reflexão e escolha do melhor
rumo a tomar. Em relação à dados sobre o serviço de saúde, pergunta-se se há informações
sobre gargalos de atendimento (Q1), gestão do estoque de insumos (Q6), registro
de pacientes com fator de risco (Q11), controle de número de nascidos vivos e
mortos (Q24) e relatórios de referência para especialidades (Q59). Sobre o Conselho
Municipal de Saúde, pergunta-se sobre reuniões (Q30), pautas aprovadas (Q43) e
atuação investigativa (Q29), além de questionar se há uma Central de regulação
da saúde no município (Q58). Neste quesito de avaliação da governança
pública pode-se dizer que há sim um bom detalhamento, o que significa que
exige-se transparência para com setores direcionados à saúde, mesmo não ocorrendo
o mesmo em relação à população em geral. Também não cobra-se indicadores de
avaliação da qualidade do serviço prestado, algo riquíssimo em educação e raro
na saúde, impedindo uma avalição objetiva.
Efetividade
governamental
Aqui fala-se nos tipos de
serviços e na efetividade da prestação destes. É interessante a existência de
questões voltadas para agendamento (Q18) e mesmo atendimento à distância (Q2).
Existe uma preocupação em relação à campanhas específicas, como aleitamento
materno (Q9), tuberculose (Q14), saúde bucal (Q19), sífilis e óbitos maternos
(Q46) e vacinação (Q16 e QQ25). Uma outra pauta focada em relação à efetividade
é quanto às condições de funcionamento das unidades de saúde (Q45) e
suficiência de insumos (Q7), além de perguntar se há médicos o suficiente (Quantas
equipes contam com médico, Q21). Nada se pergunta sobre número de leitos do SUS,
equipamentos básicos (Raio X e ambulância, por exemplo), havendo bastante
espaço para qualificação do questionário.
Regulação
normativa econômica
Como foi dito anteriormente, não
se trata da regulação e estabelecimento de critérios para a relação com a
iniciativa privada, tão profunda na saúde e que envolve produtos e serviços tão
caros. Se por um lado esta regulação estabeleceria critérios para que os gastos
no setor incentivassem a economia local, por outro ela evitaria gastos ilícitos
ou sem efetividade. Apenas questões a respeito de plano de carreira e cargos
(Q61) e prêmio para bom desempenho dos profissionais (Q62) podem ser vistas
sobre regras na contratação na área da saúde. Há espaço para muito mais.
Considerações
finais
O SUS é um dos maiores exemplos
de sistema para implementação de políticas públicas do mundo, fazendo jus ao
quanto a população cobra deste setor. O serviço público de saúde derruba e alavanca
candidaturas, enaltece ou demoniza o funcionalismo, e seu cotidiano sempre
convive com a urgência e o pânico, um “todos contra todos” quando falta uma
vaga. Fura-se filas porque a dor aumenta, o ar falta ou o sangue não chega.
Nada precisa ser mais efetivo e controlado que uma emergência, onde acontece a
vida e morte, onde nunca é o suficiente; mas é preciso medir o que é possível.
Neste sentido, a infinidade de
alterações nos regulamentos e programas na área da saúde mostram o quanto é
complexo implementar e, consequentemente, avaliar este setor. São naturais que
se encontrem flancos num indicador sobre isso, o que não impede de deixar
apontamentos e sugestões, e este foi o intuito deste esboço. Identificar
alternativas a se avançar vem no intuito de dar uma contribuição, reafirmando
que nesta série “Auditoria de resultados e governança pública” apenas
levanta-se questões a serem respondidas no futuro ou por outros. O IEG-M foi e
é uma empreitada grande, e por isso não pode parar.
Marcos Rehder
Batista, sociólogo, doutorando em Desenvolvimento Econômico no Instituto de
Economia da Unicamp, pesquisador do NEA+/Unicamp e CEAPG/FGV e-mail:
marcosrehder@gmail.com
Link com os
esboços já publicados desta série sobre “Auditoria de resultados e governança
pública”:
https://rbsustentabilidade40.blogspot.com/2021/01/o-iegm-e-transformacao-sustentavel-nos.html
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TCE SP (2020) Manual do Índice de
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Paulo
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