Auditoria de resultados e governança pública VII: i-Saúde

 

Fonte: https://www.milldesk.com.br/blog/atendimento-cliente-area-saude 

Auditoria de resultados e governança pública VII: i-Saúde

                 Seguindo a linha de contextualizar as áreas da administração pública abordadas pelo IEG-M dentro de princípios de desenvolvimento humano e da forma com que os atores sociais, políticos e econômicos são envolvidos na avaliação do “índice”, o foco deste texto está nos aspectos organizacionais da saúde pública enquanto projeto nacional, em sua governança. Mesmo havendo algo a respeito desde os tempos de colônia, pode-se dizer que foi no início do século XX que iniciou-se de uma objetiva programas de saúde coletiva, como vacinações em massa. E se pensarmos na constituição de 1988 como razoavelmente imersa no espírito do estado de Bem estar Social, não sei se alguma área está mais intimamente ligada ao “bem estar” que a saúde, provavelmente nenhuma de um modo tão radical e direto, e por isso é tão determinante nas escolhas eleitorais na esfera onde as políticas públicas acontecem de modo mais concreto, nos pleitos municipais.

                O funcionamento do SUS definitivamente trata do serviço público que mais tem influência na política local, elege vereadores, geralmente o principal alvo da oposição (afinal, trata da morte e da dor, fácil sensibilizar a população). Existem evidências de que o aumento no gasto com saúde na medida em que se aproximam as eleições tem papel fundamental nas reeleições (Silva Junior e Silva, 2020; Carvalho, 2013), sobretudo em administrações mais vinculadas à demandas populares, principalmente em regiões com maior vulnerabilidade social (Gomes et al, 2018). Se na educação os projetos se perdem em querelas ideológicas, na saúde são rinhas de valores e votos.

Nesta pandemia que continua nos assombrando veio à tona algo não muito comum, debates públicos sobre quais procedimentos tomar, quais tratamentos, adquirindo uma verve política incomum, pois o normal é cobrar-se atendimento, exames, medicamentos indicados pelos médicos não se discutir eficácia. Esta segurança em relação à autoridade médica, que de perto nem de longe possui tantas unanimidades, pode ter funcionado como um véu, uma torre de marfim, que permitiu concentrar as atenções no aprimoramento do sistema de atendimento, nos oferecendo um modelo fantástico de organização de políticas públicas raro no mundo, sempre lançando mão de parceiros privados, e deixo claro desde já que não será possível nem chegar perto da sofisticação deste sistema neste esboço; teremos apenas pequenas noções. O SUS foi emulado como modelo para outras políticas setoriais, como desenvolvimento urbano e assistência social (Arretche et al, 2019).

Existindo tantos conflitos latentes estruturais e sistêmicos nesta área, e mesmo assim o SUS sendo a tábua de salvação num momento crítico como o que vivemos, reforço que objetivo aqui é apenas  trazer um desenho do SUS e uma alternativo para avaliar este sistema nos municípios. Sendo assim, a sequência desta exposição sobre saúde pública no IEG-M seguirá com algumas palavras a acerca de ii) alguns detalhes sobre a história da saúde pública no Brasil, iii) como as publicações do IEG-M concebem o i-Saúde e, por fim, iv) como os critérios de avaliação do índice se enquadram nos 6 tópicos de análise da governança pública que estamos usando nesta série.

 

ii História da saúde pública

                Com todas as necessidades de aprimoramento normais em um sistema que dá conta de um território tão desigual e que opera em um dos setores mais complexos da economia, envolvendo escala, inovação de fronteira e bem estar, o SUS coloca o Brasil na vanguarda no cumprimento dos princípios universais dos Direitos Humanos e, pelo menos no que tange a saúde, próximos das expectativas da Agenda 2030. Todavia, a partir de 2016 muito de sua sustentabilidade está sob ameaça, com a determinação e um teto de gastos aquém do esperado pelos 20 anos seguintes, além de estar na mira do atual Governo Federal (Castro et al, 2019). A pandemia pode ter freado os retrocessos, mas o projeto era sim o enfraquecimento tanto da capacidade quanto da sofisticação do sistema de governança, extremamente democrático, diverso quanto à abrangência do que atende, e versátil em sua capacidade de articular agentes privados fornecedores de insumos e serviços.

                Apesar de algumas iniciativas esparsas como campanhas locais de vacinação, pode-se dizer que a saúde enquanto projeto de políticas públicas começou em 1923, com a Lei Elói Chaves, que institui um serviço público no setor vinculado ao sistema previdenciário. Antes disso, haviam sim iniciativas filantrópicas, que atendiam a população nos municípios mais desenvolvidos do país, de forma semelhante ao que acontece nos Estados Unidos e de onde vieram a infinidade de Santas Casas que hoje atuam como parceiros privados do sistema público (Carvalho, 2013). Nos anos 1930 houve a tentativa da implementação de uma política nacional, mas ela ganhou vigor apenas em 1963, na 3ª Conferência Nacional de Saúde, nas vésperas do golpe militar, que infelizmente freou a ambiciosa proposta sanitarista.

                Em 1966 foi criado o INPS, que incluía a saúde pública e novamente vinculava o vinculo entre atendimento de saúde e política previdenciária, aprimorada com a criação do INAMPS, que acentuou a primazia na contratação do setor privado por parte do poder público no atendimento sanitário à população. Por outro lado, no mesmo período, uma série de iniciativas de prefeitos progressistas eleitos a partir de 1976 passou a implementar serviços municipais de saúde, o que já vinha acontecendo antes da ditadura, mas foi freado (Feliciello et al, 2016; Menicucci, 2014), em processos de base que ajudaram a legitimar lideranças democráticas como Brizola e Montouro em 1982. Estas iniciativas locais foram integradas ao INAMPS ao longo dos anos 1980, com a criação dos conselhos comunitários de saúde nas Ações Integradas de Saúde (AIS).

                Com a redemocratização e a constituição de 1988 e o direcionamento constitucional para uma saúde pública que inclua agentes públicos e privados, em 1990 saiu a Lei Orgânica da Saúde, com a incorporação do INAMPS às demais iniciativas de atendimento em um único sistema dentro do Ministério da Saúde, o Sistema Único de Saúde. Ele englobou uma cadeia que acompanha a estrutura federativa da União aos municípios organizados em Diretorias Regionais, e provavelmente é a mais bem estruturada cadeia de participação e governança do país, envolvendo todas as esferas da federação com espaços para executivo e legislativo, participação da sociedade civil e da iniciativa privada. Em outras palavras, pode ser o modelo de análise para a relação entre democracia, Welfare State e incentivo à iniciativa privada tão cobrada pelos liberais – inclusive, esta relação com o setor provado pode ser visto como o grande trunfo para garantir pressão suficiente para que não se desmanche o SUS, modelo de governança que poderia ser copiado para todas as políticas públicas.

                Espera-se encontrar nos critérios de avaliação do i-Saúde todas estas dimensões: i) União, estados e municípios; público e privado (SOBRETUDO, NOS CRITÉRIOS DE CONTRATAÇÃO); participação civil. Tem-se consciência da extrema simplificação feita aqui sobre o processo de formação do SUS e suas características. Segue a diante uma síntese do foco central do i-Saúde no Índice de Efetividade da Gestão Municipal e, por fim, como seus critérios podem ser arranjados dentro do framework de governança pública do Banco Mundial.

 

iii) Como o IEG-M concebe o i-Saúde

                Assim como os demais indicadores que compõem o IEG-M, o i-Saúde abarca as incumbências da administração municipal, sem ultrapassar suas atribuições legais, especificamente, à atenção básica de saúde (TCE SP, 2014; IRB, 2016). Também são levados em conta “Equipe Saúde da Família, Conselho Municipal da Saúde, atendimento à população para tratamento de doenças como tuberculose, hanseníase e cobertura das campanhas de vacinação e de orientação à população.” (TCE SP, 2015, p. 9). Ou seja, não se está falando em exames de alta tecnologia ou profissionais médicos de especialidades, que muitas vezes são oferecidos em um município só para todos os demais de uma região.

                Ou seja, em sua definição conceitual o i-Saúde daria conta do atendimento básico e da participação do cidadão no processo, abarcando as características institucionais de como define-se o que e será oferecido e uma avalição do que é oferecido. Aparentemente, não se fala a respeito da contratualização provada dos serviços, e, assim como no caso da educação, os gastos em saúde não são avaliados como meios de indução e estímulo do desenvolvimento e geração de oportunidades. Se por um lado é um cuidado sobre serviços essenciais, por outro, está-se falando de mais de 1/3 dos gastos públicos (educação e saúde), tal que encontrar formas saudáveis deste gasto também promover diretamente o desenvolvimento de setores específicos é uma condição urgente dada a atual crise econômica, principalmente por tratar-se de um setor que envolve desde serviços não especializados até tecnologia de ponta.

 

iv) Critério de governança pública no i-Saúde

Seguindo os critérios governança pública já usados para descrever os diferentes indicadores do IEG-M, vale recordar as 6 dimensões apontadas pelo Banco Mundial (Kaufmann et al, 2010; Cruz e Marques, 2013):

1.       força da lei: conformidade com regras e controle da sociedade sobre este processo

2.       voz e prestação de contas: sociedade avalia resultados, tributação e investimentos

3.       controle da corrupção: capacidade institucional de julgar compromisso dos agentes

4.       estabilidade política: mecanismos de resiliência e adaptação

5.       efetividade governamental: capacidade de implementar políticas de realizar resultados

6.       regulação normativa econômica: modo com que se relaciona com parceiros privados

A seguir trago algumas palavras sobre como e quais questões do i-Saúde tratam cada um destes 6 itens, mencionando os temas em suas respectivas questões.

 

Força da lei

                Neste quesito avalia-se a conformidade e a forma com que regulamentos e regras norteiam administração municipal no que se refere à saúde. Pergunta-se sobre alvarás de bombeiros (Q4) e vigilância sanitária (Q5), cumprimento de horário por parte dos médicos (Q13) e se existem mecanismos de controle sobre este cumprimento como sensor biométrico (Q17). Existem também questões sobre cumprimento do gasto mínimo para a saúde previsto em lei federal (Q49 e Q53), e se há um Plano Municipal de Saúde atualizado para articular todas as exigências (Q34) e um protocolo para especialidades (Q60). Ou seja, trata de condições físicas, grau de exigência sobre os médicos, mínimo constitucional e se existe um plano para organizar esta política. Fala-se pouco sobre leis e programas nacionais relacionados à saúde pública, talvez porque eles variam muito no tempo e no espaço.

 

Voz e prestação de contas

                Aqui trata-se da accountability e do acesso à informação e empoderamento dos indivíduos, que na verdade fica bastante a desejar. Tratam apenas se divulgam de antemão a escala de trabalho nas unidades de saúde (Q3), para que se possa cobrar, e se o município implantou o Sistema Nacional de Gestão da Assistência Farmacêutica (Q40). Ou seja, cobra-se muito pouca transparência deste setor onde se gasta tanto com grande industrias farmacêuticas e onde os profissionais ganham tão acima da média. Há uma infinidade de comprar e tipos de produtos e serviços contratados com o dinheiro público, e precisa-se cobrar mais não apenas sobre a lisura, mas também quanto à qualidade destes gastos, de um modo totalmente transparente para a população. Em educação, por exemplo, pergunta-se até sobre compra e entrega de materiais didáticos, apontando e enumerando até uma lista mínima de material que precisa ser entregue.

 

Controle da corrupção

                Mais uma vez, o foco do controle está sobre a atividade dos médicos, e não da relação com a indústria farmacêutica ou mesmo na contratualização de exames e procedimentos, como pagamento de horas extras (Q31) e controle do tempo mínimo de atendimento (Q50). Tudo bem que existe uma pergunta sobre se usa-se uma conta específica para movimentar os recursos do Fundo Municipal (Q39), o que ajuda na investigação sobre o que se compra e de quem, mas nada sobre se o que é comprado ou contratado é entre ou feito. Também nada se fala sobre auditorias.

 

Estabilidade política

                Aqui, basicamente se quer saber se há um controle de informações sobre procedimentos para ser possível um planejamento e se há participação ativa de meios institucionais de participação em conselhos, por onde a sociedade participa na reflexão e escolha do melhor rumo a tomar. Em relação à dados sobre o serviço de saúde, pergunta-se se há informações sobre gargalos de atendimento (Q1), gestão do estoque de insumos (Q6), registro de pacientes com fator de risco (Q11), controle de número de nascidos vivos e mortos (Q24) e relatórios de referência para especialidades (Q59). Sobre o Conselho Municipal de Saúde, pergunta-se sobre reuniões (Q30), pautas aprovadas (Q43) e atuação investigativa (Q29), além de questionar se há uma Central de regulação da saúde no município (Q58). Neste quesito de avaliação da governança pública pode-se dizer que há sim um bom detalhamento, o que significa que exige-se transparência para com setores direcionados à saúde, mesmo não ocorrendo o mesmo em relação à população em geral. Também não cobra-se indicadores de avaliação da qualidade do serviço prestado, algo riquíssimo em educação e raro na saúde, impedindo uma avalição objetiva.

 

Efetividade governamental

                Aqui fala-se nos tipos de serviços e na efetividade da prestação destes. É interessante a existência de questões voltadas para agendamento (Q18) e mesmo atendimento à distância (Q2). Existe uma preocupação em relação à campanhas específicas, como aleitamento materno (Q9), tuberculose (Q14), saúde bucal (Q19), sífilis e óbitos maternos (Q46) e vacinação (Q16 e QQ25). Uma outra pauta focada em relação à efetividade é quanto às condições de funcionamento das unidades de saúde (Q45) e suficiência de insumos (Q7), além de perguntar se há médicos o suficiente (Quantas equipes contam com médico, Q21). Nada se pergunta sobre número de leitos do SUS, equipamentos básicos (Raio X e ambulância, por exemplo), havendo bastante espaço para qualificação do questionário.

 

Regulação normativa econômica

                Como foi dito anteriormente, não se trata da regulação e estabelecimento de critérios para a relação com a iniciativa privada, tão profunda na saúde e que envolve produtos e serviços tão caros. Se por um lado esta regulação estabeleceria critérios para que os gastos no setor incentivassem a economia local, por outro ela evitaria gastos ilícitos ou sem efetividade. Apenas questões a respeito de plano de carreira e cargos (Q61) e prêmio para bom desempenho dos profissionais (Q62) podem ser vistas sobre regras na contratação na área da saúde. Há espaço para muito mais.

 

Considerações finais

                O SUS é um dos maiores exemplos de sistema para implementação de políticas públicas do mundo, fazendo jus ao quanto a população cobra deste setor. O serviço público de saúde derruba e alavanca candidaturas, enaltece ou demoniza o funcionalismo, e seu cotidiano sempre convive com a urgência e o pânico, um “todos contra todos” quando falta uma vaga. Fura-se filas porque a dor aumenta, o ar falta ou o sangue não chega. Nada precisa ser mais efetivo e controlado que uma emergência, onde acontece a vida e morte, onde nunca é o suficiente; mas é preciso medir o que é possível.

                Neste sentido, a infinidade de alterações nos regulamentos e programas na área da saúde mostram o quanto é complexo implementar e, consequentemente, avaliar este setor. São naturais que se encontrem flancos num indicador sobre isso, o que não impede de deixar apontamentos e sugestões, e este foi o intuito deste esboço. Identificar alternativas a se avançar vem no intuito de dar uma contribuição, reafirmando que nesta série “Auditoria de resultados e governança pública” apenas levanta-se questões a serem respondidas no futuro ou por outros. O IEG-M foi e é uma empreitada grande, e por isso não pode parar.

 

Marcos Rehder Batista, sociólogo, doutorando em Desenvolvimento Econômico no Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do NEA+/Unicamp e CEAPG/FGV e-mail: marcosrehder@gmail.com

 

Link com os esboços já publicados desta série sobre “Auditoria de resultados e governança pública”:

https://rbsustentabilidade40.blogspot.com/2021/01/o-iegm-e-transformacao-sustentavel-nos.html

 

Referências

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TCE SP (2014) Índice de Efetividade da Gestão Municipal: Manual 2014.

TCE SP (2015) Manual do Índice de efetividade da gestão municipal. SÃO PAULO: Tribunal de Contas do Estado de São Paulo

TCE SP (2020) Manual do Índice de efetividade da gestão municipal. SÃO PAULO: Tribunal de Contas do Estado de São Paulo

 

 

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