POR QUE NÃO O PROTAGONISMO DO AGRO NA REINDUSTRIALIZAÇÃO?

Fonte: Inteligência artificial na agricultura: como auxiliar na produtividade? (rehagro.com.br)
 

POR QUE NÃO O PROTAGONISMO DO AGRO NA REINDUSTRIALIZAÇÃO?

Marcos Rehder Batista

 

Introdução

                Neste último final de semana de abril José Roberto Mendonça de Barros (USP e MB Associados) publicou no Estadão um artigo intitulado Indústria e Agro (2) que, acredito, traz uma pauta fundamental para pensar um reposicionamento do setor agropecuário na agenda econômica brasileira. Retomando trabalho que produziu em 2018 para o Instituto de Estudo para o Desenvolvimento Industrial - IEDI, aponta que 36% da atividade industrial depende das atividades rurais, somando tanto como compradora de insumos produzidos aqui (a montante) quanto no abastecimento de matéria prima para outras atividades produtivas (a jusante). No presente artigo concentro-me nos insumos industriais demandados pelo setor por dois motivos: 1) quando investigo o que ela exige da indústria, trago subsídios para um protagonismo do agro na reindustrialização brasileira (e por consequência, para um projeto nacional de desenvolvimento) e 2) evito reproduzir o lugar comum de que pensar as atividades rurais como meras fornecedoras de commodities de baixo valor agregado. Mesmo este último ponto não sendo tratado aqui, ficando para um próximo artigo, é importante destacar a progressiva capacidade de diferenciação de produto, agregação de valor no produto final e aumento da produtividade do trabalho nas lavouras, sobretudo na produção de frutas.

O autor salienta, inclusive, que mesmo deixando de levar em conta carros, utilitários, caminhões e motocicletas, concentrando-se apenas no que exclusivamente circula entre o agro e a manufatura, deixa claro que a suposição de que atividades rurais e industriais são universos paralelos é cada vez menos válida. Em tempos em que a politização insiste em jogar uma cortina de fumaça sobre o papel crucial da produção rural (muito além das sacas), resgato aqui esta Carta IEDI 859/2018 de Mendonça de Barros, trazendo alguns elementos complementares, como dados recentes e trabalhos que vão no mesmo sentido; em especial, uma pesquisa feita por Suzana Maria Valle Lima (UnB e Embrapa),  publicada ano passado.

 

Importância do agro versus suporte agrícola

                Se considerarmos a importância crucial da agropecuária na demanda por insumos industriais, é igualmente fundamental pontuar a evolução recente da produtividade do setor, mesmo com forte diminuição do suporte agrícola por parte federal a partir de 2009. Segundo Mendonça de Barros, o apoio direto ao produtor atingiu os maiores patamares nos últimos 20 anos. O autor começa a “Carta” apontando que mesmo com a redução de incentivos o setor foi o único no país que se fortaleceu entre 2014 e 2017, chegando neste último ano com 11,7% de crescimento, ante -5% nos serviços, -12% na indústria de transformação e -18% na construção civil; isso mesmo sob o impacto do El Niño em 2016. Detalhe: segundo Lima, setores industriais fornecedores de insumos cresceram de 2009 para cá, como máquinas (mais de 20%) e demais implementos agrícolas (mais de 194%).

                De acordo com a área Agricultural Support do site da OECD e o Texto para Discussão 2758 do Ipea, de Rogério Edvaldo Freitas (UnB e IPEA), o suporte agrícola é uma estimativa da OCDE, cujo cálculo envolve a Estimativa de Apoio ao Produtor (EAP) medida pela percentagem das receitas agrícolas brutas, a Estimativa de Apoio ao Consumidor (EAC) levantada e a Estimativa de Suporte de Serviços Gerais (ESSG), uma porcentagem do suporte total, onde entra investimentos para se criar condições favoráveis para o setor agrícola primário por meio do desenvolvimento de serviços, instituições e infraestrutura privados ou públicos. Em outras palavras, consiste em uma medida do incentivo para o setor da “porteira pra dentro” e da “porteira pra fora” implementado através de políticas públicas, e os percentuais se referem ao PIB e à arrecadação de cada pais, não sendo plausível justificar um baixo percentual de suporte pela fragilidade econômica de um país no cenário internacional.

                Em termos sociais, é igualmente importante frisar que houve 9% de aumento na renda agrícola, e que de 1978 até início de 2018 os preços relativos dos produtos agropecuários para o consumidor baixaram em média 3,5% ao anos, numa decrescente acentuada até 1998 e se mantendo estáveis desde então, mesmo com políticas de transferência de renda, que aumentam demanda. Mesmo constatando-se o quanto o incentivo às atividades agroindustrial podem tanto ancorar o crescimento da indústria de transformação de alta complexidade quanto o aumento da renda, isso não impediu o progressivo abandono do setor de 2009 para cá.

                A queda no chamado suporte agrícola no Brasil, que já estava entre o menor entres os líderes no mercado rural, recuou sensivelmente de 2009 em diante. Calculado pela OECD a partir dos diversos subsídios que a atividade tradicionalmente recebe tanto nas nações mais competitivas quanto nas mais vulneráveis, Barros tomou a evolução deste tipo de investimento público em 6 casos: EUA, Brasil, China, Indonésia, média dos membros da OECD e média dos pertencentes à União Européia. Segue o gráfico comparativo, acompanhado de uma tabela que atualiza os dados:

Fonte: Barros (2018)


                Como percentual do investimento estatal do país direcionado ao apoio ao produtor rural, como já foi dito, é proporcional à arrecadação de cada país. A partir de 2001 nossos subsídios estiveram sempre abaixo de todos os nossos concorrentes, com exceção da Indonésia entre 2007 e 2009. Atualizando os dados a partir da mesma base de informações usada por Barros em 2018 (o Agricultural Support, da OECD), o suporte caiu progressivamente até a casa de 1,5% em 2020, subindo para 3,36% em 2021; ainda bem abaixo dos quase 10% em 2009, e muito abaixo dos concorrentes analisados, todos também acima dos 10% neste levantamento mais recente.

Estes números reforçam o que Roberto Rodrigues (FGV e ex-ministro da Agricultura) apontou no artigo Recorde Sustentável, também no Estadão, em fevereiro. Ele ponderou que demoramos 400 anos para atingir 100 milhões de toneladas de grãos em 2001, 15 anos depois já produzíamos 200, e para 2023 esperamos 300, e nestes últimos 20 anos demos este salto sem um apoio compatível, efetivo e articulado para o agronegócio (agropecuária e agroindústria). Os números acima sugerem o quanto fomentar e coordenar melhor estas cadeias pode aquecer a indústria – algo realmente em débito na última década -, a ser aprofundado na próxima sessão.Sinergia entre agropecuária e indústria

                Da metade da “Carta” em diante Mendonça de Barros enumera 189 produtos industriais exclusivamente vinculados à agropecuária, dos 805 listados na Pesquisa Industrial Mensal do IBGE. Ou seja: representam 29% dos produtos industrializados no país, e estão entre os que, em sua maioria, tiveram a produção aumentada, enquanto os outros diminuíram. Entre as atividades selecionadas estavam produtos a montante (fornecedores de insumos agrícolas) e a jusante (demandantes de matéria prima). Considerando como objetivo deste texto levantar como as atividades rurais estimulam a produção nacional de seus fatores de produção (o que não acarreta menor importância do fornecimento de matéria prima, trata-se apenas de uma opção para esta reflexão específica), seria importante incrementar este diagnóstico para o IEDI com um trabalho específico sobre fornecedores: e Suzana Maria Valle Lima oferece um ótimo ponto de partida para tal.

                Ela retoma o conceito de complexos agroindustriais que, para quem é da área, já no final dos anos 1980 quebrava a falsa dicotomia agropecuária-indústria, agenda de pesquisa consolidada por José Graziano e Ângela Kageyama no Instituto de Economia da Unicamp e Decio Zylbersztajn na USP. Conforme aponta José Maria da Silveira (Unicamp e ICABR) no prefácio para volume do IPEA de 2016 que tratou da transformação produtiva agrícola e a sustentabilidade, este grupo (do qual foi um dos idealizadores) aprofundou o ganho de complexidade das cadeias de valor agrícolas em relação à inovação, contratos, articulação sistêmica entre pesquisa e modos de produção, tanto no que tange à fornecedores de insumos como à inústria de transformação que sua diretamente os insumos agrícolas. Deste novo contexto das atividades rurais surgem os chamados “complexos agroindústriais”, onde as atividades do campo ganham cada vez mais os contornos institucionais e tecnológicos da indústria (tanto que é o próprio autor quem coordena a disciplina Organização Industrial e Desenvolvimento Tecnológico na pós-graduação da universidade onde trabalha).

Lima separa a indústrias fornecedoras de insumos e tecnologias para o agro em 8 segmentos: (agricultura) i. sementes e mudas, defensivos e herbicidas, inoculantes e reguladores de crescimento, ii. máquinas agrícolas e industriais e iii. fertilizantes; (pecuária) iv. indústria de rações, v. vacinas e produtos veterinários e vi. inseminação artificial e; (comércio e serviços) vii. embalagens e ingredientes e viii. aplicativos de gestão e de tecnologias de informação. Seguem algumas informações esclarecedoras sobre estes segmentos, que merecem a busca de uma padronização capaz de permitir comparativos anuais, algo que deve estar na continuidade do esboço aqui apresentado.

                Em 2016, o Brasil constava como terceiro maior produtor de sementes do mundo (US$ 4,127 bilhões), atrás apenas da China (US$ 10,66 bilhões) e dos Estados Unidos (US$ 12 bilhões), e em relação aos defensivos, apensar do aumento de registros há uma diminuição no uso, algo a se acentuar com a adoção de instrumentos de agricultura de precisão. Já os inoculantes baseados na fixação biológica de nitrogênio (FBN) vem de uma crescente extraordinária, já em 2018 usada por 82% dos produtores. Na indústria mecânica, pode-se dizer que ao menos 67% (entre líderes e seguidoras) estão em plena expansão, sendo necessárias políticas de incentivo para 33%. Entre 2005 e 2014 as indústrias de máquinas cresceram 20% e a dos demais implementos quase 200%. Infelizmente, em relação à fertilizantes, temos demanda mas não temos oferta, consistindo em uma bela janela de oportunidade para  investimento estratégico (público e privado).

                Na produção de insumos para a pecuária, a produção de rações mostrou aumento na produção nos últimos anos, e mesmo com a falta de incentivo aos seus fornecedores e da taxação surreal sobre os produtos (cerca de 50%, na mesma ordem de cigarros e bebidas alcoólicas) a demanda cresce 3.9% anualmente aqui, e 2% lá fora. Por outro lado, há uma leve diminuição na demanda por vacinas, o que aponta para um desaquecimento da pecuária comercial entre 2011 e 2017, tendência que ter sido revertida nos últimos anos. Em todo o caso, observa-se um aumento de 15% neste período das inseminações para gado de corte, indicando para uso mais intensivo de tecnologia na pecuária de corte, algo confirmado pelo crescimento no mercado de rações; o mesmo não ocorre nas inseminações no gado leiteiro, reduzida em cerca de 5%. A discrepância no caso da indústria de vacinas com os outros dois setores se deve em muito ao bom controle sanitário: por exemplo, alguns estados ficaram isentos da vacinação de febre aftosa devido à um belo trabalho preventivo de médio e longo prazo.

                Entre 2014 e 2018 o setor de embalagens registrou crescimento médio de 1,1% ao ano, principalmente impulsionado pela crescente preferência de produtos rurais mais qualificados separados em porções menores, atestando tanto uma qualificação do valor agregado dos produtos quanto a mitigação do desperdício. Estas novas exigências também impulsionaram a produção de aditivos que garantem melhores condições para produtos in natura, sendo marcante o aumento no uso destas substâncias entre 2018 e 2019 (6,7%).

                Certamente todos os segmentos industriais mencionados irão progressivamente se integras à Economia 4.0, tanto no controle do uso dos insumos como no processamento de dados. Esta área de monitoramento e gerenciamento é uma das principais garantias para a já considerável sustentabilidade ambiental da grande agroindústria, como já foi esboçado neste mesmo espaço onde o presente artigo foi publicado. Infelizmente, Lima não trouxe estimativas sistematizadas a respeito, mas tal diagnóstico é fundamental tanto para o planejamento da produção quanto para a integração da agropecuária nas cadeias de valor mais diversas possíveis, da produção de fertilizantes até os biopolímeros (atualmente usados na produção de hardwares, por exemplo).

 

E agora? Passos adiante

              O entendimento de que as atividades rurais podem protagonizar a reindustrialização do Brasil consistiu no principal objetivo a se sustentar aqui. Para tal, é preciso uma articulação cirúrgica entre os atores envolvidos, que não exclui - mas também não reduz - a agropecuária à fornecedores de matérias primas: ela, sobretudo, demanda a indústria de transformação, exige insumos com alto grau de tecnologia. O resgate do conceito de complexos agroindustriais pode ser o centro de um reposicionamento do agro no cenário nacional, e sua fraca difusão na opinião pública resulta na dificuldade de entender-se que a agropecuária contemporânea tem alto potencial de aumento da produtividade do trabalho e tem capacidade de agregar valor aos seus produtos, sobretudo quando tivermos uma política agrícola declaradamente integrada à industrial e de inovação.

                Textos futuros irão abordar temas como agropecuária sustentável (inclusive, o outro modelo de cálculo do suporte agrícola, da União Européia), diferenciação de produtos agrícolas (tanto grão e cana como hortifrutigranjeiros, carnes e demais produtos do campo), questões relacionadas à logística, produtividade total dos fatores, segurança jurídica, inovação e tantos outros. Dada a força do setor, que começou a Economia 4.0 no Brasil antes do conceito vir à pauta com a ênfase que tem hoje, ele não pode estar em um papel secundário na agenda industrial nacional.

                Os apontamentos de José Roberto Mendonça de Barros e Suzana Maria Valle Lima podem, e muito, orientar uma pauta pública capaz de justificar no meio urbano o investimento no mundo rural (do micro ao grande): o primeiro porque posiciona a importância das lavouras para as atividades de transformação; a segunda porque enumera um ponto de partida para diagnóstico de como o campo demanda a indústria e a inovação. Obviamente, estimulam um trabalho de prospecção profunda do problema e o desafio de padronização de dados, proporcionando um poderoso guia, e muitas outras atividades econômicas vinculam-se às safras. Um trabalho longo precisa ser feito para o bom planejamento, regulação precisa e estabelecimento de metas que transbordem as cadeias de valor.

 

Marcos Rehder Batista, pesquisador do NEA+/IE-Unicamp e do CEAPG/ EAESP-FGV

Contato: marcosrehder@gmail.com

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