Os agentes econômicos no controle dos riscos emergentes no Agro 4.0

 

Fonte: Tecnologia no campo é foco de consulta pública - MundoCoop

Os agentes econômicos no controle dos riscos emergentes no Agro 4.0

Marcos Rehder Batista

 

                Não é de hoje que agropecuária chama a atenção por um uso intensivo de tecnologia de modo mais acentuado do que em outras atividades no país. Por isso, os impactos da Indústria 4.0 tem consequências aceleradas na agroindústria, tanto no tocante ao uso sustentável dos recursos quanto às TIC’s (conectividade, rastreamento, monitoramento, processamento de informação e Inteligência artificial). A criação dos 6 Centros de Pesquisas Aplicada em Inteligência Artificial, projeto federal aprovado no último dia 4, terá um papel fundamental na coordenação desta transformação no país, e o da Unicamp trabalhará diretamente com o Agro 4.0. Este esboço procura contextualizar as atividades rurais dentro das atuais políticas de desenvolvimento da Economia 4.0 (ou, como a bioeconomia é vista hoje dentre as cadeias de valor da Indústria 4.0), novos desafios para o Agro 4.0 diante de novos riscos na produção, algumas iniciativas e oportunidades que ilustram esse novo momento e, por fim, quais as transformações na governança dos agentes diante dos novos elementos nos diagnósticos do risco agropecuário, apontando caminhos para um programa de trabalho sobre as questões apontadas aqui.

                No dia 7 do mês passado a Câmara Agro 4.0 aprovou o Plano de Ação 2021-2024, que visa uma digitalização mais robusta das atividades rurais. Faz parte do “Plano Nacional da Internet das Coisas”, programa do MCTI que neste caso faz uma parceria com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MCTI e MAPA, 2021). O uso intensivo de tecnologia é a maior marca das atividades agropecuárias brasileiras, impulsionado pela criação da Embrapa nos anos 1970 e em uma evolução constante a partir da fantástica rede de pesquisadores espalhados por nossas instituições de ensino e pesquisa federais e estaduais, e com importante papel de entidades privadas na extensão: o agronegócio certamente é o setor produtivo mais preparado para entrar nesta nova realidade econômica, como já apontavam estudos da CNI (IEL/NC, 2018a) e IEDI (2019). Aliás, esta iniciativa vem a se somar a várias outras, e a partir da próxima quinta-feira trarei periodicamente pautas sobre a integração das atividades rurais brasileiras no universo “4.0”.

                Como também ficou muito claro no Fórum Brasileiro de Agronegócios, evento virtual ocorrido em 20/4, que contou com lideranças políticas, empresariais e acadêmicas, existe uma preocupação crescente com as novas condições de governança das cadeias de valor da agropecuária digital e de precisão, relativos aos novos riscos inerentes às novas tecnologias e às eminentes questões ambientais. Aqui será contextualizado este novo ambiente e apontadas algumas pautas relativas à esta relação entre mudança tecnológica, sustentabilidade e governança, que consiste na coordenação das relações de competição e cooperação entre os vários atores com poder decisório e autonomia que compõem este universo, garantindo a participação ampla destes na construção de um projeto nacional de Agro 4.0. Esta coordenação tem o desafio de negociar entre os diferentes interesses de produtores, políticos, associações e agentes tecnológicos (locais, nacionais e globais), além de incluir no processo atores que precisam ser incluídos nesta nova onda de modernização, como agricultores e profissionais que tem dificuldade em superar métodos tradicionais de atividade econômica.

                Deste modo, este texto se divide nas seguintes partes:

  1.         Contextualização da agropecuária como protagonista deste novo momento da economia brasileira
  2.       .  A formação do Agro 4.0 nos últimos 10 anos
  3.        . Iniciativas recentes em rastreamento, monitoramento e inteligência artificial
  4.        . A Governança no Agro 4.0 nos projetos do MCTI e da ABDI
  5.       .  Desafios de expansão

            Apenas por clareza conceitual, está-se definindo governança aqui como mecanismos para coordenar a relação entre agentes que compartilham um mesmo recurso comum, afim de evitar a escassez deste recurso devido ao mal uso decorrente da competição ou da exploração indiscriminada dele entre estes agentes (Ostrom, 2005). Como o objetivo é monitorar não uma dinâmica convencional mas a implementação de uma política de inovação, em que os recursos são os pacotes tecnológicos voltados para a mudança, optou-se por utilizar o framework para análise de governança da SMOI, Sustaintability Mission-oriented Insstitutions (Dal-Poz et al, 2019): i) “strategy”, referente à como as inovações se justificam como estratégia econômica; ii) “object”, relativo ao balanço entre custos e resultados da mudança; iii) “form”, a análise dos mecanismos para os agentes atuarem em conjunto, em decisões coletivas sobre regras e difusão de conhecimento focando no futuro desejado; iv) “method”, incentivos e restrições para motivas a adoção das inovações e; v) “logic”, o sentido dado à mudança segundo os valores e expectativas dos agentes dentro do contexto social. Estes são pontos fundamentais, a serem retomados no final do texto.

 

1. Contextualização da agropecuária como protagonista da modernização econômica brasileira

                É redundante falar do salto tecnológico pelo qual passou a agropecuária brasileira nos anos 1970, marcadamente com a criação da Embrapa e da consolidação de um sistema nacional de P&D, que buscava envolver todos os setores. Como país tradicionalmente agroexportador, foi natural que a inovação ganhasse destaque nas atividades rurais, de modo que no final dos anos 1980 já não era mais tratada como uma atividade tão distante da manufatura, e as concentrações produtivas das principais culturas passaram a ser chamadas por muitos de complexos agroindustriais (Kageyama et al., 1990; Salles Filho, 1993). Inclusive, já era apontado que as inovações mais transformadores viriam de saltos organizacionais e relacionados à informação e mecanização (Silveira e Olalde, 1993), já confirmando a tendência ao que chamamos hoje de Indústria 4.0.

                Esta ideia defendida neste projeto que se inicia, de que a agroindústria (ou, agronegócio) é uma ponte privilegiada para a entrada do Brasil no universo “4.0”, para através dela atingir os demais setores da economia, é uma possibilidade aventada por pesquisadores de peso especializados em economia industrial. No próprio projeto “Indústria 2027” da Confederação Nacional da Indústria, coordenado por referências na área da Unicamp e UFRJ, foi dado um papel de destaque para a agroindústria, inclusive no que tange à biotecnologia e bioprocessos, não se restringindo aos avanços em rastreamento, monitoramento, processamento de dados, conectividade (IoT) e sistemas de suporte à tomada de decisão (inteligência artificial), comuns a todas as áreas transformadas no sistema produtivo da Indústria 4.0 (Coutinho et al, 2018; IEL/NC, 2018). Em relatório do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, desdobramento do “Indústria 2027” que contou com vários dos responsáveis pelo levantamento da CNI para organizar conceito e iniciativas em Indústria 4.0 pelo mundo, dentre as manifestações introdutórias aponta-se a potencial da agropecuária em liderar a implementação da indústria digitalizada no Brasil, por ser o setor nacional mais competitivo em nível mundial, em exportações, volume de produção e uso intensivo de inovação de fronteira (IEDI, 2019).

                Admitindo que o agro é uma alternativa privilegiada para um projeto de cach up de todos os nossos sistemas produtivos e das tecnologias que o integram, há de se pensar que os principais impactos organizacionais começarão no campo. Todos os agentes envolvidos enfrentarão transformações, isso quando não ficarem completamente de fora, como trabalhadores de campo, turmeiros, vendedores externos, analistas operacionais, entre outros. Por isso, começar a avaliar as mudanças irreversíveis na governança entre os agentes que decidem ao longo de toda a cadeia (ou, todas as cadeias) do agronegócio é urgente e serve de piloto para todos os demais setores da economia, pois a tendência é que a nova dinâmica operacional tome conta de tudo, inclusive da organização do Estado.

 

2. Agendas para o Agro 4.0 nos últimos 10 anos e os novos riscos no horizonte

                No último dez anos a agropecuária brasileira dobrou sua importância em nossas exportações, o que somado ao forte incremento tecnológico tornou-se uma oportunidade para que ela assuma a dianteira das atuais transformações produtivas rumo ao novo momento das cadeias de valor (Buainain e Fraga Souza, 2019). Ter a agroindústria ou a bioeconomia como caminho para Indústria 4.0 – ou, como preferem outros e eu concordo, Economia 4.0 (Buainain, 2018; Buainain e Fraga Souza, 2019) – obviamente traz uma série de desafios, tanto relativos aos novos riscos tecnológicos e ambientais quando nos impactos destes novos riscos sobre a governança dos agentes envolvidos. Aliás, o risco agrícola pode ser uma boa chave para se enumerar novos desafios para o meio, que podem trazer problemas e oportunidades, dado que em suma as tecnologias “4.0” são voltadas à minimização dos riscos por excelência.

                A difusão e aprendizagem de mecanismos para medir o risco agropecuário como ponto de partida para repensar como isto se dará daqui para a frente começa por ter em mão alguns elementos fundamentais. O riso em si consiste no cálculo da probabilidade de um evento acontecer, é uma medida de dispersão, diferente da incerteza, que é subjetiva (Buainain e Silveira, 2017). O risco, muito além de um perigo, pode ser a oportunidade para que uma nova trajetória tecnológica se estabeleça, e o contrário também é verdadeiro, gerando uma cadeia de inovações e novas situações, no que Schumpeter definiu como destruição criadora (Schumpeter, 1942).

                Existem alguns critérios diferentes para se classificar os riscos agrícolas, como a origem e a sua natureza (aonde ele atinge). Dentre as apresentadas por Buainain e Silveira (2017), duas parecem especialmente úteis para o propósito deste texto: a partir dos agentes envolvidos e dos apresentados ao longo de cadeias de suprimentos. Como literalmente está posto, o primeiro trata especificamente de como um risco incide sobre um agente ou conjunto de agentes específico, e sua compreensão é fundamental para qualquer participante. Já a segunda classificação é fundamental sobretudo para quem opera como “flagship company”, empresas que operam exatamente na conexão entre os pontos da cadeia de valor (e que controlam a mesma), e se entendermos o “4.0” como uma nova versão do sistema econômico (por isso, “Economia 4.0”), os riscos nas cadeias de suprimentos podem dar um ponto de vista privilegiado sobre as atuais transformações (até porque são consequências dos riscos para atores e conjuntos de atores particulares). Seguem as tabelas com as respectivas classificações de risco.

TIPOS DE RISCOS PRESENTAS NAS ATIVIDADE AGROPECUÁRIA A PARTIR DOS AGENTES ENVOLVIDOS

(Buainain e Silveira, 2017)


                Ou seja, mostra que dentre os riscos de preço, produção (elementos naturais e humanos), financiamento e normas reguladoras existem consequências que podem incidir sobre produtores individuais, comunidade (setor ou APL) e sobre toda a economia nacional. No caso do estudo da governança do risco, seria importante um aprofundamento no que se refere aos riscos institucionais, pois neles há regulação das estratégias individuais sobre os conflitos de competição entre os agentes, que envolve elementos de todos os outros; esta seria uma primeira agenda de investigação.


PRINCIPAIS CATEGORIAS DE RISCOS ENFRENTADOS PELAS CADEIAS DE SUPRIMENTO 

(Buainain e Silveira, 2017)

                Com exceção dos dois primeiros, todos os demais são provocados pela má governança das ações dos agentes envolvidos direta ou indiretamente. Mesmo os dois primeiros devem estar na agenda do monitoramento “4.0”, logo, seu monitoramento também engloba agentes humanos. Deste modo, tem-se na primeira classificação os agentes, e na segunda os tipos de risco mais detalhadamente. Na combinação entre estas duas tem-se tanto como os riscos atingem cada agente quanto como atingem as cadeias, através da conectividade permitindo rastreamento, monitoramento, processamento de informação e mecanismos para tomada de decisão (via AI) tanto dos sistemas individuais de produção como conectando estes produtores ao mercado mundial. A regulação das cadeias ao longo de seus participantes, acerca de todos os tipos de risco que incidem sobre elas, seria uma segunda agenda de pesquisa.

                Aliás, se considerarmos que as condições naturais condicionam todas as outras no âmbito da bioeconomia, um elemento importante ainda não citado é a variação dos riscos segundo os biomas. A consciência de que existem peculiaridades a serem medidas de acordo com o local é a mais antiga na agropecuária, que definiu a possibilidade ou não de sedentarização. Atualmente, os cuidados assumem nova roupagem, a partir de demandas globais, como Agricultura de Baixo Carbono, ou diretamente associados à manutenção das condições naturais através de técnicas estabilizadoras do meio ambiente que garantam a continuidade dos serviços ambientais (Buainain et al, 2020). Dada a abrangência de escala global da conexão dos sistemas de rastreamento, monitoramento, processamento de informação e tomada de decisão do Agro 4.0, a mitigação do risco característica da agropecuária de precisão ou digital acentua estes processos como elementos para o ganho de competitividade. Por isso, o monitoramento dos biomas e os agentes que promovem este monitoramento dos serviços ecossistêmicos e riscos seriam uma terceira agenda sobre a governança dos agentes no Agro 4.0.

                Além destes 3 elementos que reordenarão os agentes que precisam estar assimilados pelos sistemas de governança necessários para a boa implementação de políticas públicas (e a Indústria 4.0 é uma política pública em TODOS os países em que acontece), a própria geração e desenvolvimento das tecnologias traz novos agentes para tomarem parte nesta governança. As TIC’s fazem parte das atividades rurais a muito tempo, mas agora foram trazidos para o centro do palco, definitivamente. A IoT é o elemento integrador deste processo (Masshurá e Leite, 2017), para que a Inteligência Artificial possa aplicar comandos de mitigação do risco que operem em cadeia (na cadeia e em cadeia). Ou seja, em todas as áreas da cadeia de valor e a própria cadeia de valor depende da governança do sistema nacional de pesquisa (com universidade, centros e órgãos de fomento) e de como este sistema entra na governança que coordenará todo o sistema Agro 4.0, aí a importância da compreensão do projeto que cria os Centros de Pesquisas Aplicada em Inteligência Artificial; esta seria uma quarta agenda de pesquisa importante na governança desta nova realidade agropecuária.

                Não se trata de pretender aqui sugerir uma agenda de pesquisas prioritárias nas ciências sociais aplicadas para o Agro 4.0, dado que mesmo dentro das ciências sociais tradicionais os impactos nem de longe se resumem à questão da governança. Aliás, nem mesmo no Ciclo de Políticas Públicas a governança sempre é central na implementação de projetos governamentais. Expus aqui apenas 4 temas que me chamaram atenção para serem trabalhados dentro da Institutional Analysis and Development de Elinor Ostrom, entendendo estas novas soluções como recursos de uso comum e estes riscos como de impacto comum: mais os riscos que os recursos são comuns, diga-se a verdade, por isso a prioridade de expandir a internet no campo, por exemplo. Na sequência, trago uma série de soluções tecnológicas “4.0” no setor privado que se destacam no agro brasileiro, para depois falar um pouco sobre o Projeto Agro 4.0 do MCTI e o da ABDI, finalizando com alguns apontamentos preliminares.

 

3. Iniciativas recentes em rastreamento, monitoramento e inteligência artificial

                Existem uma série de tecnologias emergentes que cumprem as funções da chamada Agro 4.0, como rastreamento, monitoramento, processamento, conectividade (IoT) e suporte para tomada de decisão (IA). Empresas fortíssimas no setor intensificam suas parcerias e aquisições de strartups (AgrTechs) possuidoras de patentes saídas do “berçário” na Esalq, Unicamp, Unesp, Usfscar, UFMG, UFV, USP Ribeirão e Pirassuninga, dentre outras. A expressão “Environmental, social and corporate governance (ESG)” não sai das agendas da agroindústria nem dos parâmetros avaliados para a implementação de políticas voltadas para o fortalecimento das atividades no campo, dos grandes conglomerados até os agricultores familiares atingidos por esta cadeia de valor, que como já foi dito, talvez seja a única onde o Brasil está na fronteira tecnológica no uso na produção (em pesquisa, estamos na fronteira em algumas áreas).

                Em relação ao rastreamento, há muitas iniciativas usando blockchain para mapear o caminho dos produtos ao longo da cadeia, até o consumidor. Temos como exemplo a SafeTrace, especializada em acompanhar o percurso de produtos da pecuária, proporcionando tanto aprimoramento logístico como segurança sobre a qualidade dos produtos, hoje exigida por uma boa parte das agências reguladoras nacionais e mesmo por parte dos consumidores. As consequências de qualquer fator novo em qualquer ponto da cadeia podem ser identificadas, mitigadas se forem danosas, otimizadas se forem benéficas, abrindo mais e mais oportunidades de intervenção e negócios. Tais alternativas trazem a governança da produção cada vez mais para dentro dos centros de pesquisas em TIC’s.

                Uma outra forma fundamental de controle é o monitoramento proporcionado por imagens de satélite, como o feito pela Strider, a partir do mapeamento por satélites de monitoramento de pragas, vegetação, água, e também monitoramento gerencial. Recentemente ela foi adquirida pela Syngenta, que está em implementação de um programa 4.0, que não é o único. Este tipo de controle proporciona a otimização do uso de recursos, como a diminuição do uso de defensivos de uma forma precisa afetando o mínimo possível as reservas. Algumas empresas vems e especializando nesta relação entre agroquímicos e sustentabilidade, como a Perfect Flight, e com parcerias promissoras com sistemas de rastreamento.

                Auditorias e certificadoras como a Control Union estão se especializando em consolidar os dados levantados por estes sistemas de rastreamento e monitoramento para emitir diagnósticos, tanto voltados à produtividade como à sustentabilidade ambiental, sobretudo relacionada à emissão de carbono. Esta etapa do processamento de dados é o ponto onde as informações levantadas são usadas para direcionar a tomada de decisão. Porém para que sejam consolidadas, dependem da transmissão dos dados, da conectividade, algo tem sido o grande gargalo para o avanço da Economia 4.0 no Brasil, inclusive, pelas dificuldades na decisão quanto ao padrão de 5G a ser adotado nacionalmente.

                A conectividade atinge em cheio tanto as demandas por tecnologia de ponta por parte do grande agronegócio quanto o agricultor familiar, tendo impactos especialmente sobre toda a atualização (ou mesmo, ganho de liderança) do Agro 4.0. Não é atoa que é a principal pauta dos projetos governamentais no setor, sendo o avanço de pesquisas em Internet das Coisas a grande pauta estratégica atualmente, junto com a expansão da internet no campo. Por isso a importância destes centros em universidades de ponta anunciados no começo deste mês de maio.

                O aprimoramento dos instrumentos de suporte à tomada de decisão via Inteligência Artifical são a “cereja do bolo” porque juntam todas as demais tecnologias para guiar a ação estratégica, isso quando não os comandos não são formulados automaticamente e passados machine-to-machine, simulando tomadas de decisão (não digo tomada de decisão porque os algoritmos já são decisões, tomadas pelos programadores e seus respectivos consultores das áreas específicas). A IA é a alma do “4.0”, mas depende de todas as outras tecnologias para ser alimentada de informações e ter capacidade de transmissão das decisões, ampliando ao máximo a reação em cadeia.

                Estes são apenas alguns exemplos com os quais tive contato para pensar a implementação de tecnologias agro 4.0. Estas e várias outras inovações em rastreamento, monitoramento, processamento, conectividade e opções para tomada de decisão são os elementos sobre os quais as políticas de “4.0” são voltadas, promovendo harmonia de funcionamento entre competitividade e sustentabilidade. Seguem duas políticas Agro 4.0 no Brasil às quais tive acesso, com algumas considerações sobre elas, para finalmente trazer algumas palavras sobre a governança entre os agentes desta cadeia de valor.

               

4. A Governança no Agro 4.0 do MCTI e na ABDI

                Como foi posto no início do artigo, existe um programa nacional geral voltado para IoT que orienta a implementação das tecnologias da Indústria 4.0, que foi subdividido em câmaras setoriais, entre elas a Câmara Agro 4.0, que divulgou o documento orientador de seus trabalhos a pouco mais de um mês. Também já foi dito que o programa nacional de IoT anunciou o investimento para a criação de centros voltados à esta tecnologia, um, inclusive, voltado ao Agro 4.0. A Câmara Agro 4.0 também está envolvida em um projeto de fomento da ABDI sobre o tema, e nesta sessão serão expostas como há diferenças conceituais entre o framework usado pela “Câmara” e no projeto da ABDI, e porque o da ADBI satisfaz melhor como orientação para a análise da governança da implementação deste projeto de mudança tecnológica, algo fundamental para satisfação dos interesses dos envolvidos e para promover uma interação entre os agentes capaz de alimentar o processo de aprendizagem.

                A Câmara Agro 4.0 envolve agentes econômicos em suas entidades de classe, como a CNA, órgãos públicos, como a Embrapa (mas não há no documento de um mês atrás menção direta de universidades públicas, principais polos de geração e difusão de inovação tecnológica, o que em si é uma fragilidade), órgãos da administração direta federal, e empresas fornecedoras de tecnologias específicas (ao invés de apenas representantes de classe, que representariam democraticamente todas as empresas do setor). Talvez este upgrade com os centros de IoT traga as principais instituições de ensino e pesquisa e democratize o acesso ao processo de todas as empresas de um determinado setor, evitando privilégios.

O framework é composto por 4 eixos: i) desenvolvimento, tecnologia e inovação, que trata nas tecnologias para as 5 processos vistos aqui como característicos da revolução digital “4.0”; ii) desenvolvimento profissional, que trata precisamente da qualificação de todos que trabalharão no processo; iii) cadeias produtivas e desenvolvimento de fornecedores, este sim voltado diretamente para como as tecnologias impactam da relação entre os agentes da cadeia, sendo o ponto integrador do sistema que envolve a implementação desta política pública e; iv) conectividade no campo, que é uma pré-condição para que todo o resto aconteça, inclusive a relação entre os agentes, entre os agentes e as máquinas e entre as máquinas. É um frame que aponta para uma agenda de trabalho que respeita as condições nacionais, inclusive dedicando um grupo específico para uma tecnologia que é a mais falha no Brasil, a conectividade ao longo do território, e com uma preocupação específica também para a qualificação dos operadores das tecnologias, com um provável incremento na extensão rural (MCTI e MAPA, 2021).

Outro padrão conceitual para organizar este processo é o usado pela ABDI, no seu edital para o fomento de iniciativas de AgrTechs lançado em 2020. Ele está focado em projetos específicos sobre o funcionamento da produção e da cadeia, sem preocupação com geração da tecnologia ou formação de capital humano. Quatro categorias foram contempladas pelo edital (ABDI, 2020):  um focado em atividades “da porteira para dentro”, “produção e colheita”, ou seja, sem relação direta com a interação/integração da cadeia, e 3 relacionados aos elementos que circundam a atividade do produtor rural, “insumos”, “indústria de transformação” e diretamente a “integração de segmentos”, esta notoriamente relacionada à relação entre agentes que exige uma governança acurada. Trata-se de um olhar sobre a produção sem seu aspecto competitivo mesmo, sem preocupação específica com formação e qualificação. Para o objeto de análise que se propõe na agenda de pesquisa que aqui se apresenta, porém, um aprofundamento para este frame pode ser mais frutífero, sem desconsiderar o que for desenvolvido no grupo de trabalho “cadeias produtivas e desenvolvimento de fornecedores” da Câmara Agro 4.0.

Em suma, existem não só referência nas políticas públicas para se aprimorar constantemente um trabalho organizado na implementação do Agro 4,0, como há estudos acadêmicos em tecnologias e em economia para que aponte caminhos consistentes para esta nova trajetória tecnológica que está se consolidando.

               

5. Desafios para a governança

Apresentou-se aqui um apanhado de elementos iniciais a partir dos quais pretende-se desenvolver uma agenda de trabalho sobre o que acontece no grupo de trabalho “cadeias produtivas e desenvolvimento de fornecedores” da Câmara Agro 4.0 e à categoria “integração de segmentos” no edital Agro 4.0 da ADBI (onde parece mais nítida a conexão com os outros elementos do framework), especificamente de como as questões levantadas (ou que poderiam ser levantadas) em torno das 4 pautas do risco agrícola aqui pontuadas atingem e são atingidas pela ação dos agentes no sistema de interação/cooperação – ou, situação de ação (Ostrom, 2011) – e suas consequências contingentes sobre os arranjos institucionais de governança. Temos novos dilemas de escolha racional, cada vez mais pautados pela interação entre aos agentes e menos regras racionais estáticas posto que se tratam de fenômenos emergentes (Silveira, 2019), por isso o foco nos pontos onde os agentes se conectam, nas cadeias de valor, e como o objetivo da produção “4.0” é o aprimorar os diferentes controles, recorre-se à como os riscos incidem sobre o processo de governança.

É necessário recorrer-se à uma forma de microeconomia também emergente que parta dos agentes e como suas ações geram padrões novos – institucionais, comportamentais e tecnológicos -, dando eco para uma revolução que a Nova Economia Institucional e a Economia Evolucionária promoveram nas ciências econômicas na segunda metade do século XX, sobretudo em seu último quarto (Bowles, 2004). Retomando as pautas a serem trabalhadas sobre como o uso das tecnologias “4.0”, cuja governança pode ser refletida nos posicionamentos dos agentes tanto no grupo do Agro 4.0 quanto nos projetos da ABDI, os riscos considerados fundamentais a serem pensados nestes espaços seriam os seguintes:

 

  1.    Riscos institucionais sobre os agentes individuais, pois neles há regulação das estratégias individuais sobre os conflitos de competição entre os agentes, que envolve elementos de todos os outros
  2.   Regulação das cadeias ao longo de seus participantes, acerca de todos os tipos de risco que incidem sobre elas
  3.   Monitoramento dos biomas e os agentes que promovem este monitoramento dos serviços ecossistêmicos e riscos
  4.    Governança do sistema nacional de pesquisa (com universidade, centros e órgãos de fomento)

 

Cada um destes aspectos analisados nos grupos apontados (GT da Câmara 4.0 e grupo de projetos selecionados no edital da ABDI) será avaliado segundo o critérios de governança daS SMOI (Sustaintability Mission-oriented Insstitutions) para projetos de políticas públicas de mudança de trajetória tecnológica nas cadeias de valor.  São pontos fundamentais para a avaliação dos dilemas sociais (conflitos, jogos racionais) provocados pela interação econômica e política dos agentes (competição e cooperação).


Tópico de

Governança

Descrição

Strategy

“como as inovações se justificam como estratégia econômica”

Object

“balanço entre custos e resultados da mudança”

Form

“análise dos mecanismos para os agentes atuarem em conjunto”

Method

“incentivos e restrições para motivas a adoção das inovações”

Logic

“sentido dado à mudança segundo os valores e expectativas dos agentes dentro do contexto social”

             Como já foi sublinhado ao longo desta exposição, pretendeu-se aqui apenas dar as linhas gerais de um programa de trabalho, as referências nas quais se aprofundará leituras e uma delimitação do universo onde se empreenderá o trabalho empírico. Neste momento o que mais se espera são sugestões e críticas, para um aprimoramento do estudo e maior ressonância no debate e, principalmente, colaborar com o aprimoramento de políticas voltadas a contribuir com o setor produtivo, que precisa se adaptar à nova realidade. A agropecuária, apesar de apresentar vulnerabilidades características de sua dependência da natureza, é nosso setor produtivo mais promissor para o ingresso brasileiro no mundo “4.0”, e a partir dela a difusão e consequente formação de capital humano capaz de se adaptar à constantes mudanças evidentes em uma economia conectada, rastreada, monitorada e submetida à métodos cada vez mais sofisticados de processamento de dados e mecanismos digitais de tomada de decisão.

 

Marcos Rehder Batista, sociólogo, doutorando em Desenvolvimento Econômico no Instituto de Economia/Unicamp, vinculado ao NEA +/IE-Unicamp e do SP in Natura Lab/FCA-Unicamp, líder do projeto RB Sustentabilidade 4.0. E-mail: marcosrehder@gmail.com

 

 

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