Auditoria de resultados na governança pública II: implementação

Fonte: https://www.olomoucka.casd.cz/

Tribunais de contas, IEG-M e Estados & Governos 4.0

Marcos Rehder Batista

            Ao longo dos últimos 200 anos tivemos mudanças consideráveis a respeito do que se pode chamar de “boas práticas de gestão”, sobretudo porque as próprias noções de Estado e Governo não são mais as mesmas. Principalmente a partir dos anos 1970 ocorreram transformações disruptivas no modo de se governar resultantes de mudanças na relação entre Estado e Sociedade Civil, que alteraram as demandas para governança e, com isso, tornaram-se urgentes alterações nos objetivos dos mecanismos burocráticos. Para se levantar as consequências da adoção da “auditoria de resultados” e mecanismos de interação como Escolas de Contas por parte dos Tribunais de Contas (TC’s) e sua relação pedagógica com governos e sociedade, é preciso discorrer sobre os desafios das mudanças estruturais decorrentes disso. Compreender as mudanças nos procedimentos e objetivos dos Tribunais de Contas é um ponto chave para agentes locais planejarem como transformar suas orientações de boas práticas de gestão em capital político, e assim estarem motivados a não só aplicar como difundir estes princípios na sociedade. Este segundo texto dos 12 sobre o IEG-M traz algumas questões sobre estes desafios das mudanças institucionais demandadas pela sociedade e pela própria noção contemporânea de Estado.

                Se no calor da disputa eleitoral do ano passado focou-se nas coalisões de mandados e não de partidos para se entender o papel nas políticas públicas como inovações gerenciais institucionais (Batista, 2020; Freitas, 2019), trazendo-se à luz alguns trabalhos nacionais sobre a relação entre políticas públicas e o combate ao clientelismo (Speck, 2004), num segundo momento definiu-se o Instituto Rui Barbosa como instituição que baliza todas as outras na definições de “boas práticas de gestão”, assumindo-se o IEG-M como materialização dos critérios de efetividade imersa na conformidade com a lei.

Neste terceiro esforço de ambientação dos desafios da investigação, necessário para aí sim partir-se para um mergulho na metodologia do índice, será feito um mapeamento das condições onde este recurso tecnológico (o índice) foi implementado, utilizando o framework teórico da IAD (Institutional Analisys and Development) de Elinor Ostrom (2005): digamos que neste texto as condições de implementação serão organizadas de acordo com as “variáveis externas” i) comunidade (Sociedade, Estado & Governo), ii) normas (Desafios para o contexto burocrático do Tribunais) e iii) recursos (a implementação do IEG-M), que não serão tratados aqui conforme suas características técnicas mas segundo seu processo de implementação (sobre as características técnicas será tratado no próximo texto).

Vale reforçar a importância em se usar uma abordagem com a IAD neste estudo, posto que prioriza mapear e analisar como políticas públicas mobilizam e vinculam agentes e são executadas ao modo deles, desenhando os potenciais de ganhos políticos e vantagens para diversos setores da sociedade. Para os políticos, este estudo é útil porque ajuda a pensar fortalecimento eleitoral; político bem intencionado que não ganha eleição não implanta boas práticas e bons projetos. A população se empodera compreendendo melhor o processo e descobrindo caminho para participação. Um trabalho desta natureza pode contribuir com os Tribunais de Contas para uma melhor compreensão tanto das consequências de suas iniciativas quanto sobre como recorrer à sociedade para aprimorar a auditoria externa. Também o terceiro setor pode tirar proveito do tipo de análise proposta aqui, pois pode aprimorar o uso dos recursos oferecidos para prospectar necessidades de suas pautas e formas de solucionar junto com poder público local.

Comunidade: um novo contexto de Estado & Governo 4.0

            Uma série de estudos sobre a relação entre auditoria externa pública e sociedade se consolidaram no Brasil desde os anos 1990 a partir do trabalho de Guillermo O’Donnell (O’Donnell, 1991; 1998), girando em torno do conceito de accountability vertical e no conflito entre as demandas atuais e desafios para adequação da natureza orgânica das burocracias à esta nova realidade. É claro que definir esta nova dinâmica da burocracia sob a alcunha de “Estado 4.0” e chamar o novo modo de promover a sua governança de “Governo 4.0” exige uma série de cuidados para que os estudos não se percam nas tentações de modismos, necessitando ao menos de uma sinalização sobre o que há de essencialmente novo e balizando o framework por abordagens já clássicas, e a partir delas chegar ao que pode ser considerado diferente nesta “Revolução 4.0” multisetorial. Respeitando que estes conflitos normativos da burocracia serão tratados na próxima sessão, reservo-me neste ponto a esclarecer que além da accountability horizontal, que consiste na fiscalização do governo por instituições também estatais como os Tribunais de Contas, a sociedade também quer formas mais efetivas e dinâmica de aprovar ou não seus governantes, além de participar da gestão, e isso exige uma transparência cada vez maior dos “Tribunais”, para que as pessoas tenham subsídios para julgar e opinar; este processo de controle social e participação denomina-se accountability vertical. Fica claro que não só os diagnósticos da “auditoria de resultado” como o processo de aprendizado exigem uma abertura dos tribunais para um papel também de aprendizagem e difusão de boas práticas de gestão, e nas próximas linhas serão levantadas algumas questões sobre esta sociedade, os órgãos e governos que irão aprender neste processo a partir de suas características.

                Um trabalho seminal que vai razoavelmente ao encontro das discussões em torno do conceito de accountability vertical foi apresentado no esboço para uma agenda de pesquisa em Políticas Públicas de Valeria Costa, do Departamento de Ciência Política da Unicamp (Costa, 2015). Ele sustenta que para haver efetividade na implantação e políticas públicas é necessária uma consonância entre Estado e Sociedade, a conquista da legitimidade, e por isso é difícil atingir bons resultados resumindo-se apenas à abordagem do “Ciclo de Políticas Públicas”, onde o planejamento fica no eixo implantação-avaliação e dá menos relevância aos agentes envolvidos no processo (inclusive, os usuários). Aliás, a própria importância dada ao desenvolvimento e às políticas públicas como meio para atingi-lo não fazia sentido num primeiro momento do Estado Moderno, voltado para expansão e dominação do território, que é definido pelo autor como “Estado versão 1.0”. Tal estágio é sucedido por um momento em que o Estado se torna também refém de seu território, sendo obrigado a ocupar e desenvolver este espaço e sua sociedade, dando origem à pauta do desenvolvimento e das políticas públicas; esta fase é dada como “Estado versão 2.0”, e é caracterizada pela sociedade de massas estabelecida no contexto da Segunda Revolução Industrial (ou, Indústria 2.0).

                A chamada Sociedade Pós-Industrial, deflagrada pela contestação da massificação e pela organização de movimentos pelos direitos civis de minorias que inundaram o mundo ocidental após os anos 1960, traz um novo contexto. Esta tendência à personalização e à identidade também se manifestou na economia através da produção flexível e dos produtos cada vez mais focados em satisfazer nichos; na esfera do Estado aconteceram experimentos estruturais como orçamentos participativos, conselhos deliberativos em todas as esferas e mesmo cooptação de lideranças identitárias e setoriais em cargos na burocracia nomeados por governos, e partidos voltados para parcelas específicas da população multiplicaram-se. É bem verdade que partidos para classes específicas sempre existiram, dos jacobinos aos Partido Trabalhista Inglês e Democratas Cristãos, minorias sempre defenderam reconhecimento e a cooptação sempre fez parte da renovação das burocracias (Selznick, 1966). Mas é possível sim encontrar um grau de legitimidade nunca visto nestas ações como vimos neste momento especial identificado por Valeriano Costa, e apesar de ele não ter nominado esta etapa, por analogia à própria lógica de seu texto podemos naturalmente chama-la de “Estado versão 3.0”.

                Antes de partir para um desenho conceitual de sua proposta de nova agenda para estudos de Políticas Públicas o autor reconheceu uma espécie de esgotamento do modelo das militâncias identitárias heterogêneas, dando como exemplo os protestos de meados de 2013 no Brasil. Estes movimentos não se caracterizaram por representarem minorias, mas sim pela massificação de várias criticas contra as formas tradicionais de gestão e seus desvios, inclusive rejeitando movimentos sociais identitários e organizações partidárias (Freitas, 2019), foram pulverizadas e sem liderança unificada. Depois da publicação da palestra tivemos pelo menos 1 movimento de mesma natureza: os protestos contra o racismo de 2020, este com uma polarização que reflete a reorganização da sociedade dentro da oposição conservadores/progressistas. Temos agora a exigência de um Estado que precisa ser capaz de dominar o “Ciclo das Políticas Públicas”, incluir minorias, mas também reconhecer a sazonalidade das identidades e a necessidade de dados e parâmetros capazes de adequação à uma infinidade de demandas, nova configuração que possibilita o uso do termo “Estado versão 4.0”.

O uso dos termos “Estado 4.0” e seu respectivo “Governo 4.0” não só obedece a lógica da tipologia proposta pelo professor da Unicamp como está em voga em agendas de pesquisa mundo afora (Sagarik et al., 2018; Kowalkiewicz e Dootson, 2019) e no Brasil, inclusive dentro dos TC’s (Nogueira de Sá e Detoni, 2019). Em suma, todos eles se referem à capacidade de monitorar dados de todos os processos da gestão publica e disponibilizá-los de modo transparente, dinâmico, compatível com outros bancos de dados e conectável com outras plataformas e aplicativos, permitindo o gerenciamento de tudo que acontece, a mobilização de várias pautas e assimilando tanto estas demandas como os novos participantes nos processos de formulação e implantação das políticas públicas. Ou seja, oferecer informação acessível exige tanto uma postura didática por parte dos órgãos burocráticos de disseminação de boas práticas de gestão (cuja solidez destes princípios é fundamental, diante do leque de demandas inovadoras que surgirão deste empoderamento social) quanto novos mecanismos para incorporar novos atores nos processos decisórios. A adaptação à estas novas exigência consiste em um desafio grandioso para um órgão de accoutnability como um Tribunal de Contas, cujos procedimentos nem sempre podem ser totalmente transparentes, pois isso facilitaria o jogo de tráfico de influência de acordo com o acesso à informação por parte dos fiscalizados (agentes políticos, que tem poder de influência). A próxima sessão será sobre esta necessidade de adequação normativa aos novos tempos nas burocracias do Tribunais de Contas, e como o IEG-M e as Escolas de Contas são reflexos desta necessidade neste contesto que aqui arriscou-se chamar de “Estado 4.0”.


 Desafios normativos para os TC’s enquanto burocracias de Estado

                 Ao concluir sua palestra de 2014 transcrita em 2015, o professor Valeriano resume em 2 aspectos básico a serem atendidos ao se analisar a implantação e políticas públicas via paradigma do “Ciclo de Políticas Públicas: a permeabilidade com que o Estado assimila demandas da sociedade e também difunde seus valores nela ao estabelecer instituições como as Escolas de Contas e o IEG-M e; a reivindicação da identidade, dando conta de que as políticas públicas não apenas atendem às demandas singulares dos mais diversos grupos sociais, mas também criam identidades e demandas; ou seja, quais as consequências indiretas destas políticas para a efetividade, para a gestão em seu sentido técnico e para a sociedade. Ao longo das próximas semanas não apenas haverá uma descrição dos parâmetros usados nos indicadores e seus resultados objetivos, mas também uma avaliação e como atinge os agentes envolvidos (ou, potencialmente envolvidos) e sua otimização política. Nesta semana serão tratados apenas os desafios normativos para as transformações necessárias nos Tribunais de Contas para adequarem-se às necessidades de permeabilidade, a partir de apontamentos de um grupo de pesquisadores que dá continuidade ao trabalho de Guillermo O’Donnell e que também conta com membros na estrutura de accountability pública. Esta agenda está sob a coordenação de Marco Antonio Carvalho Teixeira, que também trabalha as pautas das boas práticas de gestão e o combate ao clientelismo desde os anos 1990’s, e mantem diálogo com praticamente todas a entidades de difusão de boas práticas de gestão citadas no  texto que deu início à esta minha pauta de investigação (BATISTA, 2020).

                Em trabalho recente, Rocha, Zuccolotto e Teixeira (2020) apontam que as dificuldades dos Tribunais de Contas em se adequar as condições de accountability vertical vem exatamente desta característica de “Panótipo”, em que parecem ver tudo, mas não serem vistos por ninguém. Tal como Valeriano Costa, eles concordam que é uma característica das burocracias a concentração de poder através da falta de clareza nas regras e, sobretudo, nos procedimentos, concepção herdada da abordagem weberiana a respeito do aparato estatal. Não se pode negar a necessidade de reservas por parte de quem investiga, o que não justifica o extremo insulamento dentro do qual estas instituições se colocavam até a constituição de 1988 e que hoje buscam atenuar, sobretudo, a partir de iniciativas pedagógicas e transparência dos processos, mesmo havendo poucos mecanismos de participação. É possível dizer a partir do estudo dos autores que, se há dificuldades em promover mecanismos de participação nos processos e julgamentos das contas (pois há relações clientelistas de dependência que podem condicionar esta participação), pode-se aprimorar mecanismos de transparência sobre prestações de contas e processos de análise dos tribunais, além das ouvidorias.

                Tudo bem que esta abertura realmente tem seu impacto sobre a permeabilidade da burocracia sobre a sociedade, pois a própria forma com que as informações são disponibilizadas podem induzir a forma com que acontecerão as ações coletivas sobre a estrutura, sendo mais um requisito no planejamento desta Política Pública. Consequentemente, virão demandas sociais que podem afetar a organização dos TC’s e assim levar a outras mudanças normativas na atividade destes órgãos. Todavia, recorrendo à terminologia do sociólogo britânico Anthony Giddens (1990), trata-se de um sistema perito (artefato tecnológico) que é usado sem a possibilidade de diálogo entre seus criadores e seus usuários, consistindo em um mecanismo de desencaixe (que permite o fornecimento de algo sem interação direta) carente de algo que promova um reencontro entre os agentes que permita o processo de reflexividade (que são as mudanças institucionais/normativas provocadas pelas inovações inerentes às ações individuais). Ou seja, para um aprimoramento da permeabilidade (e com ela, o de aprendizagem) seria necessária a criação de um mecanismo de interação face-a-face, como seria uma participação ativa dos atores sociais numa accountability vertical. Uma alternativa seria a criação de mecanismos normativos institucionais que viabilizassem iniciativas pedagógicas acerca de boas práticas, que se materializa no esforço da “auditoria de resultado” oferecido pelo IEG-M.

                A implantação deste tipo de interface entre TC’s, agentes políticos e sociedade foi o foco do trabalho de Fernandes, Fernandes e Teixeira (2018), onde trazem a importância do aprimoramento das ouvidorias, escolas de contas e participação de redes de defesa da integridade pública. Eles destacam que muito além de garantir o direito dos cidadãos ao acesso às informações, estas possibilidades permitidas por inovações normativas levam à construção de uma mão dupla na permeabilidade entre instituições e sociedade, na medida em só havendo mecanismos de accountability vertical que hoje é possível uma accountability horizontal. Isto porque a dita onisciência panóptica dos tribunais é utópica, sendo que detalhes sobre o que acontece só podem chegar através da iniciativa dos cidadãos, e com isso torna-se fundamental a aprendizagem sobre boas práticas de gestão por parte dos cidadãos e o funcionamento das ouvidorias para denuncias sobre os gestores ou mesmo a respeito de irregularidades internas nos TC’s. Escolas de contas e redes em defesa de boas práticas (que podem surgir a partir da legitimação do IEG-M) podem aproximar a população das agências de auditoria externa pública e encorajá-la a manifestar-se via ouvidorias. Talvez o fato de Gustavo Fernandes, autor principal do estudo, ter feito parte do staff do TCE SP e ter sido um dos idealizadores do IEG-M possa ter feito com que a abordagem do trabalho encaixe tanto com as questões levantadas nesta série exploratória, e mesmo com os objetivos manifestos das cartas emitidas por entidades representativas dos conselhos dos tribunais mencionadas no artigo anterior (BATISTA, 2021).

         Pode-se dizer que tanto demandas externas aos Tribunais quanto a conscientização de necessidades estruturais de nosso contexto social contemporâneo levaram a mudanças institucional-normativas (ou, ao menos, desejo por estas mudanças). A partir da breve discussão esboçada nesta sessão é possível contextualizar as forças sociais e demandas institucionais que condicionaram o desenvolvimento dos mecanismos de avaliação de desempenho correlacionados aos IEG-M, e que papel estes cumprem no aprimoramento da relação entre burocracia e sociedade, gerando padrões de “Governo 4.0” dentro de um “Estado 4.0”. Por isso é tão importante o uso de uma abordagem que dê conta tanto da análise do aparato institucional como da dinâmica dos atores envolvidos nas e pelas inovações institucionais, realçando a relevância em se pensar este processo sob o viés da IAD. Contextualizadas as condições sociais (comunitárias) e institucionais (normativas) em torno da implantação dos mecanismos de auditoria e aprendizagem de boas práticas de gestão, seguem algumas palavras sobre o histórico da implantação destes recursos tecnológicos de uso comum.

  Implementação do IEG-M enquanto recurso tecnológico de uso comum

                 Tanto o trabalho de Rocha, Zuccolotto e Teixeira (2020) quanto do de Fernandes, Fernandes e Teixeira (2018) reconhecem mudanças de paradigma no interior dos TC’s, rumo à satisfação das necessidades de permeabilidade entre burocracia e sociedade, e muitos autores afirmam que a implantação do IEG-M foi a operacionalização deste processo (Camargo, 2020; Castro e Carvalho, 2017; Passos e Amorim, 2018; Araújo, Bezerra Filho e Motoki, 2019 e; Malheiro, 2018), além dos próprios relatórios do tribunal paulista e do Instituto Rui Barbosa corroborarem esta hipótese (TER SP, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020; IRB, 2016). Aparentemente, a substituição do tom puramente coercitivo das análises de auditoria externa para uma segunda linha de ação de viés mais propositivo e pedagógico sobre efetividade na gestão pode ter criado uma maior aderência aos princípios de boa governança por parte dos gestores, algo a ser averiguado em estudo posterior.

                Como já foi apresentado no texto do final de janeiro, a implementação do IEG-M pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo aconteceu sob coordenação do então recém empossado conselheiro Sidney Beraldo, que já havia coordenado o Índice de Vulnerabilidade Social quando foi presidente da Assembleia Legislativa paulista e conheceu os fundamentos da Secretaria de Gestão Pública quando comandou a pasta. Trata-se de uma iniciativa que já vinha sendo idealizada e foi aprimorada neste momento. Ao longo de 2013 o índice de efetividade terminou de ser planejado e em 2014 foi consolidado, tendo os resultados divulgados em 2015. Nas palavras do então presidente do TCE SP, que abrem o primeiro relatório do “índice”, “cidadão hoje reivindica — com legitimidade — o acesso a elementos de informação que lhe permitam avaliar os resultados das ações dos gestores públicos e sua adequação aos compromissos assumidos com a sociedade”, sendo o IEG-M um “instrumento que se dispõe a evidenciar a correspondência das ações dos governos às exigências das comunidades” (TCE SP, 2015; p.5). Ou seja, pretende declaradamente sintetizar a discussão aqui feita.

                Uma característica importante deste índice é que ele vem exatamente em oposição aos dados meramente relacionados às características econômicas dos municípios, como PIB/hab ou PIB por setor, abrangendo outras dimensões do bem estar como saúde, educação e conservação das cidades, olhando também para infraestrutura e não somente para número de vagas, anos de escolaridade ou taxas de mortalidade (Passos e Amorim, 2018). Ele realmente não aborda questões relacionadas diretamente à economia, mas tem enorme potencial para ser compatível com indicadores como Gini ou mesmo o Índice de Vulnerabilidade, sendo uma tarefa promissora avaliar uso conjunto com estes. Por outro lado, este foco em questões diretamente relacionadas à gestão local (dado que desenvolvimento depende em muito de políticas macroeconômicas alheias ao poder dos municípios) pode tornar o indicador mais atraente aos olhos dos gestores, sendo que um trabalho particular sobre a relação e aprendizagem proporcionada pode consistir em trabalhos extremamente frutíferos.

                Este potencial foi visto rapidamente dentro das agências públicas de auditoria externa, tal que o Instituto Rui Barbosa (IRB) decidiu de imediato adotar o IEG-M em âmbito nacional, dada a capacidade deste instrumento em empoderar as burocracias locais e os cidadãos numa relação Estado-rede (Castro e Carvalho, 2017). Já em 2015 iniciou-se uma força-tarefa, e em 2016 apresentou-se um primeiro levantamento, com 4701 municípios respondendo os questionários e 4037 sendo validados, tal que 22 estados mais o distrito federal participaram desta primeira experiência (IRB, 2016). Neste relatório nacional elaborado pelo IRB utilizou-se o índice em correspondência com outros, como o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), o Índice de Vulnerabilidade Social (IVS) e o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). Hoje todos os estados do país fazem parte do projeto, com algumas variações quanto aos critérios, mas respeitando um eixo central de questões, sobretudo quanto ao planejamento e prestação e contas.

                Esta apresentação do processo de implementação não consiste exatamente no que Ostrom quer dizer ao se referir aos recursos, às condições materiais e objetivas. Decidiu-se expor sobre a implantação aqui para na próxima semana sim descrevermos operacionalmente este recurso tecnológico de uso comum, disponibilizado e aprimorado hoje pela Rede Indicon, onde são disponibilizados os avanços promovidos no Instituto Rui Barbosa a partir de sua Vice-presidência de Desenvolvimento e Políticas Públicas. No blog da Indicon estão todas as informações sobre os critérios preenchidos pelas prefeituras e os métodos de avaliação sugeridos em nível federal e consolidados em nível estadual pelos TC’s. Esta centralidade na orientação será a espinha dorsal da investigação a partir de agora, e a análise do método a ser empreendida na próxima semana, por se tratar de um método de avaliação da governança, usará os parâmetros gerais propostos por Ostrom, em combinação com frameworks específicos sobre políticas públicas (Buta e Teixeira, 2020; Di Giovanni, 2009; NEPP, 2005; Cavalcante, 2018; Brandão, 2008).

 

Síntese 

                Esta segunda etapa da série pretendeu dar um apanhado de geral de como as perguntas iniciais levantadas em outubro de 2020 materializaram-se em um objeto, em um projeto de políticas públicas específico que abrange boas práticas de gestão, e como ele pode ser inserido nesta relação entre efetividade e capacidade de agregar apoio político. A construção de uma permeabilidade entre Estado e população consiste em desafios expostos aqui a partir de autores que consolidaram uma tradição de pesquisa, e a estes e outros que estão em diálogo durante o processo irá se recorrer ao longo deste trabalho exploratório. Hoje vivemos a chamada “Revolução 4.0” na economia, e é possível fazer uma analogia entre suas características e as novas exigências sobre as burocracias públicas e a forma de governá-las junto à sociedade, correspondendo ao que demonstrou-se poder chamar de “Estado 4.0” e “Governo 4.0”.

A abordagem da IAD oferece a possibilidade de esmiuçar a relação com vários atores, e focar conceitualmente a análise nesta relação promovida pela accountability vertical entre TC’s, governos locais e população. Isto permite a compreensão de meios para construção de uma legitimação política de natureza burocrática e carismática (em suas novas formas de conquista da relação pessoal), permitindo inclusive uma releitura da tipologia weberiana das três formas de dominação legítima. Feita a contextualização teórica, social, normativa e política da implementação do IEG-M, daqui para frente os produtos a serem compartilhados deverão ter um caráter muito mais operacional, pelo menos até as etapas 11 (sobre uso conjunto com outros índices de desenvolvimento) e 12 (conclusões sobre possibilidades de aprendizagem e rede de agentes que podem se vincular localmente através da assimilação destes princípios de boa governança).

 

 

Marcos Rehder Batista, sociólogo, doutorando em Desenvolvimento Econômico no Instituto de Economia/Unicamp, pesquisador do NEA/IE-Unicamp e do SP in Natura Lab/FCA-Unicamp, líder do projeto RB Sustentabilidade 4.0. E-mail: marcosrehder@gmail.com

 

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