Auditoria de resultados na governança pública III: metodologia

Auditoria de resultados na governança pública III: metodologia

Marcos Rehder Batista

Dando continuidade às reflexões sobre meios de propor e executar boas práticas de gestão que estimulem a participação da sociedade, e assim tragam apoio político para os mandatos, neste terceiro texto defino um framework de trabalho sobre o mais abrangente instrumento de avaliação da governança dos municípios brasileiros, o IEG-M. Como método de “auditoria de resultado” dos Tribunais de Contas estaduais, ele traz os principais critérios de efetividade na implementação de políticas públicas, e por isso tentaremos situá-lo dentro de versões adequadas à participação popular do quadro dos “Ciclos de Políticas Públicas”, como o de Sônia Draibe (do NEPP/Unicamp) e de John Kingdon. Ele faz parte do que chamamos de “avaliação das políticas”, para a qual serão usados conceitos de análise de governança. Acreditando que o aprimoramento da sinergia com a sociedade no exercício de mandatos seja o instrumento mais poderoso contra a atual crise de legitimidade política quevivemos (Limongi e Figueiredo, 2017; Freitas, 2019), aqui definimos a metodologia a ser usada para avaliação e uso do IEG-M como instrumento de ação estratégica na gestão pública.

Enquanto instrumento para a avaliação de políticas públicas o Índice de Efetividade da Gestão Municipal (IEG-M) precisa dar conta de uma gama enorme de questões, que vão desde os mecanismos de composição da agenda até a análise de seus impactos. Este universo da governança é realmente uma panaceia composta por muitos arcabouços teóricos que não são necessariamente compatíveis, tal que trazer este índice para o debate da ciência política ou das pesquisas acadêmicas em políticas públicas exige uma sustentação que legitime o uso deste ou daquele corpo conceitual. Para discorrer aqui sobre as características básicas da metodologia usada no IEG-M a primeira coisa a se fazer é definir o que se entende por “efetividade”. Num momento subsequente situaremos a “efetividade” dentro de algumas alternativas de análise dos “Ciclos de Políticas Públicas” que abordem a capacidade de mobilizar e organizar setores da sociedade civil no processo de elaboração, implementação e renovação dos programas, o que permitirá a comparação com a Institutional Analisys and Development (IAD) de Elinor Ostrom e demais metodologias de análise de governança; isto facilitará escolher um framework, situando-o em relação a outros e definindo o que perguntar sobre o IEG-M. A partir deste momento serão trazidos diretamente os critérios de análise do índice.

                A importância em se renovar o modo de avaliar os “ciclos” foi posta no último texto desta série, sobretudo diante de um novo contexto de facilitação das condições de accountability vertical, - controle a participação social (Fernandes et. Al, 2018) - , que caracterizam o que por hora arriscou-se a chamar nesta investigação de “Estado 4.0”, envolvimento social também fundamental para a conquista de apoio político. Apenas contextualizando este terceiro esboço sobre o tema, depois de uma primeira reflexão sobre a relação (infelizmente problemática) entre adoção de boas práticas de gestão nos mandatos e a conquista de apoio político (e, consequentemente, o voto) publicado no final de outubro, o passo subsequente foi definir  as orientações dos Tribunais de Contas como padrão do que chamamos de “boas práticas de gestão”, quando a discussão tornou-se objetivamente uma agenda de pesquisa com a publicação do primeiro artigo desta série, no final de janeiro deste ano. A partir daí estabeleceu-se um programa de trabalho, no qual apresenta-se aqui a terceira etapa, sobre os “critérios metodológicos” a serem usados na avaliação dos 7 indicadores. Antes disso, na segunda etapa, aprofundou-se sobre dentro de quais debates acadêmicos brasileiros pretende-se inserir este projeto e em que contexto institucional implementou-se o IEG-M.

Mesmo tendo bem clara a intenção de também servir para incentivar agentes públicos a internalizarem os princípios de gestão embutidos no IEG-M, é fundamental, antes de partir para os setores sobre os quais fala o índice, esta compatibilização com o debate científico. É através deste que serão feitas comparações com outras experiências e aprimoramentos no método, no uso e no aproveitamento do índice como meio de aprendizagem. Segue então uma i) discussão sobre a definição de “efetividade”, ii) uma contextualização da “efetividade” nos diagnósticos de avaliação pautados na abordagem dos “Ciclos de Políticas Públicas” mencionados no artigo anterior a partir do texto de Valeriano Costa (o que exige um esclarecimento sobre os pontos principais desta abordagem) e, por fim iii) contextualizar o IEG-M entre outros índices e como os tribunais o avaliam e interagem com ele, usando por base a proposta de avaliação nacional da Rede Nacional de Indicadores Públicos (Indicon), do Instituto Rui Barbosa.

 

i) O que se espera de um “índice de efetividade”?

                Trazer à luz a questão da efetividade, se não sinaliza para uma guinada didática por parte dos Tribunais de Contas na difusão de boas práticas de gestão, pelo menos demonstra a intenção destas instituições em abrir uma segunda frente de atividade, dado que não poderão abandonar as cruciais auditorias de conformidade com a lei. A efetividade é o critério que avalia os impactos diretos e indiretos das políticas públicas no bem estar das pessoas e mesmo na dinâmica de organização da sociedade, e junto com outras 7 dimensões (relevância, economicidade, eficiência, esforço, eficácia, equidade e utilidade) compõe a orientação a partir da qual a ação dos órgãos de auditoria externa brasileiros pretendem contribuir para a adequação do Brasil aos princípios dos ODS’s da Agenda 2030 (ENTC, 2020).

                Como já foi posto no primeiro texto desta série, o IEG-M foi criado pelo TCE-SP em 2013 e já foi publicado o primeiro levantamento em 2015. No manual metodológico deste primeiro ano define-se efetividade como análise da “qualidade dos gastos municipais”, avaliando a “correspondência das ações dos governos às exigências das comunidades” (TCE SP, 2015). Ou seja, foca tanto na capacidade de atingir objetivos de modo sustentável como em corresponder às demandas exigidas pela população; não se trata apenas de suprir com eficiência as necessidades, mas de responder à uma população que exige, logo, participa, está envolvida no processo, é protagonista. Esta concepção é reafirmada na primeira versão nacional do índice, lançado pelo Instituto Rui Barbosa em 2016, onde igualmente fala da “medição da qualidade dos gastos e dos investimentos realizados”, mas também da “aferição de resultados, correção de rumos, reavaliação de prioridades e consolidação do planejamento, favorecendo o controle social ao evidenciar a correspondência entre as ações dos governos municipais e as exigências da sociedade” (IBR, 2016). Ou seja, pensa no levantamento de informações que estimule tanto a avaliação quanto a melhoria dos gastos tendo em vista a participação da sociedade e aprimoramento destes mecanismos, sendo mais que meramente um medidor de produtividade ou mesmo uma mera relação de custo/benefício.

                Apesar de bastante sintética, a visão de “efetividade” apresentada desde estas primeiras publicações do "índice" é consonante com o que era trabalhado em profundidade no debate acadêmico. Em artigo que sistematiza o método de trabalho de um dos grupos mais influentes na avaliação de políticas públicas no país, o NEPP/Unicamp, Sônia Draibe divide em três dimensões a medida de bons resultados na ação dos governos (Draibe, 2001): a i) eficácia, que mede a relação entre os procedimentos e os resultados (avaliação de processo), a ii) eficiência, que é a otimização entre custo e benefício (processo e resultado) e, finalmente, iii) a efetividade, que trata dos impactos e efeitos da política sobre as mais variadas dimensões da realidade, como a medida com que solucionou o problema para o qual foi implementada (e outros impactos indiretos sobre serviços públicos), impactos sociais, como indução à novas reivindicações ou mesmo reorganização social e impactos institucionais, como mudanças na lei (por exemplo, adoção de aplicativos de transparência devido à muito acesso, incentivado pelo bom funcionamento de um conselho). Em suma, segundo Draibe, efetividade se relacionaria com impactos nos serviços públicos, na sociedade e nas instituições, correspondendo ao que foi brevemente apresentado no relatório do Instituto Rui Barbosa: qualidade dos serviços, satisfação das exigências e aprimoramento dos canais.

A efetividade pode então ser vista como a amplitude dos impactos de uma ação, sendo um critério basicamente avaliativo dos resultados, e não do processo durante seu turno. Por isso, o objetivo do IEG-M ser medir a “efetividade” pressupõe que ele mede os resultados, por excelência, um instrumento de accountability. Como já foi adiantado, a próxima sessão tratará de situar o IEG-M dentro do que seria um padrão de análise do “Ciclo de Políticas Públicas” enquanto mecanismo de avaliação. Isto envolve uma comparação entre algumas propostas de “ciclo” e localizar onde está o papel de avaliar, e como fica a análise da “efetividade” na avaliação, além de como se propõe que ela seja feita. Logo após virão algumas palavras sobre como os tribunais consideram a capacidade de avalição do  IEG-M (impactos nos serviços públicos, na sociedade e nas instituições) nas revisões aprofundadas em 2018.

 

ii) Efetividade na avaliação dos “Ciclos de Políticas Públicas” em um “Estado 4.0”

                Para definir uma orientação da análise de como o IEG-M pode proporcionar um processo de aprendizagem de boas práticas de gestão precisamos encontrar aonde situa-se a análise da efetividade dentro da avaliação das políticas e como a avaliação cumpre um papel na aprendizagem e aprimoramento dentro um quadro geral de implementação. Uma orientação para esta tarefa pode ser retomar a proposta de agenda para estudos de políticas públicas esboçada por Valeriano Costa (IFCH/Unicamp) de 2015, que apontou para algumas inovações no paradigma do “Ciclo de Políticas Públicas” (Costa, 2015) que aprimoram a relação entre administração pública e sociedade e adequam a gestão no atual estágio que o próprio texto nos leva a chamar de “Estado 4.0” (ele pensa a evolução do Estado moderno como “Estado versão 1.0”, “2.0” e assim por diante). Considerando que as propostas trazidas nesse texto são postas como contingências de um processo histórico já apresentadas no texto anterior deste projeto, traremos aqui apenas o que ele diz especificamente sobre os “Ciclos de Políticas Públicas”.

                Costa toma como base um volume especial da Revista Brasileira de Ciências Sociais organizado por Marta Arretche em 2003, onde há um trabalho de Celina Souza (2003) que traz dentre as possibilidades de abordar programas públicos os “Ciclos de Políticas Públicas”, mas aponta a necessidade de complementação deste método com instrumentos que analisem a interação entre ação do Estado e forças sociais, sugerindo o uso que John Kingdon (1995) traz com a versão “multiple streams” da análise dos “Ciclos”. Esta versão usada por Kingdon abandona a ideia de que definimos os problemas e depois buscamos soluções, admitindo que as pesquisas aprimoram o tempo todo alternativas de ação que vem à tona quando problemas saltam aos olhos em “janelas de oportunidade”, abraçadas por pesquisadores e setores da sociedade que pressionam agentes públicos: são como soluções em busca de problemas. Podemos dizer que as duas sugestões de Valeriano Costa para o aprimoramento da abordagem dos “Ciclos”, primeiro a consciência de que as políticas públicas são estruturadas pela sociedade mas também estruturam novas dinâmicas nesta (processo que ele chama de permeabilidade) e segundo que identidades que guiarão novas demandas são construídas neste processo (que ele chama de reivindicação da identidade), são contempladas pela concepção de Kingdon sobre a definição das agendas de políticas.

                É bem verdade que existe uma grande multiplicidade de definições de “Ciclos de Políticas Públicas” e de suas fazes, tal que o possível num escrito do presente escopo precisa optar por tomar apenas algumas por base para se chegar ao papel da avaliação e da efetividade neste processo. Optou-se por trazer o framework brevemente apresentado por Celina Souza em outro texto sobre o assunto (2006), o de Kingdon (1995), uma versão mais atual do livro de Howlett, Ramesh e Perl (2013) e a já citada proposta de Sônia Draibe (2001). Eles foram organizados em um quadro comparativo sintético, cujo conteúdo em si poderia facilmente ser tema de uma tese de doutorado, mas que será exposto brevemente aqui.

 

Diferentes concepções das etapas do “Ciclo de Políticas Públicas”

Souza (2006)

Kingdom (1995)

Howlett-Ramesh-Perl (2013)

Draibe (2001)

Definição da Agenda

Estabelecimento da Agenda

Montagem da Agenda

Formação da Agenda

Identificação das alternativas

Especificação das alternativas

Formulação das Políticas: propostas de solução

 

Produção e Confronto das alternativas pelos diferentes atores

Avaliação das opções

Escolha das alternativas

Seleção das opções

Filtragem da policy segundo valores culturais e organizacionais

-

 

Tomada de decisão

Formulação e decisão

-

 

Formulação da estratégia de implementação

Implementação

Implementação

Implementação

Implementação

Avaliação

-

Avaliação

Avaliação: eficiência, eficácia e efetividade*

                Como se pode observar, há uma correspondência na sequência das ações. Souza (2006) traz uma versão sintética, com o propósito apenas de resumir esta abordagem junto a outras apresentadas no texto, mas pode-se observar que pouco diz sobre a estruturação de estratégias de tomada de decisão e de implementação. O mesmo pode-se dizer de Kingdon que, inclusive, também resume avaliação e escolha das opções em uma mesma etapa, pois declaradamente está mais focado na relação de influência mútua entre especificação das alternativas e estabelecimento da agenda – é um evolucionário, preocupado com processos de inovação e seleção. Howlett, Ramesh e Perl trazem uma tentativa de abordagem de “Ciclos” que desse conta da influencia das mais variadas instituições da sociedade no processo e como elas são influenciadas por ele, colocando identificação, avaliação e seleção das opções dentro de um mesmo processo. Pode-se dizer que o framework que abrange de forma mais detalhada o “ciclo” é o de Sônia Draibe, inclusive dado conta da interrelação entre ação de Estado e sociedade: ele e o de Howlett, Ramesh e Perl são os únicos que trazem subsídios sobre avaliação (o de Souza é muito breve), além de trazerem a concepção de formação da agenda de Kingdon, e por isso servirão de base para detalhar-se a parte da “avaliação”, como segue no próximo quadro. 

 

Diferentes concepções da avaliação dos “Ciclos de Políticas Públicas”

Howlett et al.

(2009)

Draibe (2001)

NEPP (2005)

Ostrom (2011)

 

 

 

Participantes

Papéis

Estratégias

Informação

Avaliação de esforço

Eficiências: Metas e Recursos

Econômico

Resultados potenciais

Avaliação de desempenho

Avaliação de eficiência insum/prod

Custos e benefícios

Avaliação de processo

Eficácia: Subsistemas de Implementação

Estrutura, resultados e impactos

Nível de controle social sobre escolhas

Avaliação de eficácia

Efetividade: impactos e efeitos (uso e participação)

Governança

Governança

 O que retomo na discussão a partir deste quadro são os elementos das situações de ação do IAD desenvolvido por Elinor Ostrom. Apesar de não ser específico da tradição dos “Ciclos de Políticas Públicas” ele traz nítidas contribuições, até porque é um framework de avaliação também. Note-se dos ele traz 4 elementos anteriores ao momento da avaliação tal qual é sugerido pelos demais autores, pois não fala dos resultados mas do mapeamento dos atores, suas ações e as informações que possuem da realidade. Isto dá conta da dinâmica da interação dos agentes nos dilemas sociais que levam a renovar suas pressões sobre a agenda no começo de cada ciclo, trazendo subsídios para a “simbiose” entre agentes, alternativas e definição da agenda proposta por Kingdon em sua abordagem evolucionária do “multiple streams”. Pode-se dizer que, além desta dimensão societária atingida por Ostrom e Kingdom, a avaliação se estrutura em 3 aspectos: dimensão das condições materiais, tomado como eficiência por Draibe, econômico pela exploração de seu esboço em avaliação e política do NEPP (que também trouxe a contribuição de Kingdon à proposta de Draibe) e dividido em avaliação de esforço, desempenho e eficiência (insumo/produto) por Howlett e em duas dimensões por Otrom (resultados potenciais e custos e benefícios); dimensão das condições estruturais e administrativas, os processos em Howlett, eficácia em Draibe, governança interna na avaliação do NEPP e nível de controle social sobre as escolhas no processo por Ostrom e; dimensão dos resultados globais, onde Draibe chama de “efetividade”, Howlett de eficácia e tanto Ostrom como o aprimoramento do trabalho de Draibe em relação à avaliação, o do NEPP, chama de governança. É nesta coincidência entre o a sugestão de análise da efetividade e o de governança que se explora o quadro final desta breve sistematização do framework para analisar como o IEG-M analisa efetividade, à luz do que é posto sobre o conceito em quadros mais amplos de avaliação de políticas públicas. Porém, antes do quadro, é fundamental uma breve definição de governança.

                No trabalho do NEPP citado acima entende-se governança por “capacidade dos governos de implementar políticas públicas, de forma coordenada, através de mecanismos que permitem a participação institucionalizada da sociedade no processo decisório estatal e a responsabilização (accountability) dos representantes públicos envolvidos na sua execução” (NEPP, 2005; p. 20). Ou seja, trata-se tanto da capacidade de implantar quanto de monitorar os impactos no sentido de ter os melhores resultados e se responsabilizar por eles, inclusive pela capacidade de trazer a sociedade para os processos de elaboração, implementação e controle dos resultados das políticas. Ostrom vai definir governança como a instância coletiva onde são criadas e interpretadas as regras que irão orientar a interação em um determinado sistema, e onde são definidas as regras de manejo dos recursos de uso comum e as condições de resiliência de um sistema social, político ou econômico (Ostrom, 2005). Para a autora, estes sistemas , através de suas capacidades diagnósticas, analíticas  e prescritivas, permitem o acúmulo de conhecimento a partir de estudos empíricos e na avaliação dos esforços passados em mudanças (Ostrom, 2011). Complementando a definição do núcleo de pesquisa da Unicamp, pode-se dizer que governança é um mecanismo coletivo de tomada de decisão permeado pro regras criadas e/ou legitimadas por esta coletividade, processo que leva à internalização de padrões, aprendizagem e transformação consciente das realidades social, política e econômica; para desenvolvimento, implementação e aprimoramento de políticas públicas.

                Um trabalho importante sobre governança, que traz a questão da efetividade tão valorizada por Sônia Draibe e que põe-se como tema central do IEG-M é o de Nuno Ferreira Cruz e Rui Cunha Marques (2013), ambos do CEG-IST da  Universidade Técnica  de  Lisboa e da Lodon School of Economics and Political Scineces. Eles mantém o foco na análise de governança pública nos municípios, partindo do escopo proporcionado pelo Banco Mundial publicado no trabalho de Kaufmann, Kraay e Mastruzzi (2010), cujos critérios mantém uma correspondência interessante com os citados anteriormente. Eles publicaram vários trabalhos sobre governança na gestão local (Cruz e Marques, 2016; Cruz, 2017), citando posteriormente um trabalho brasileiro (Oliveira e Pisa, 2015), pegando dados de índices como o IEG-M e submetendo à ferramentas de tomada de decisão como matriz SWOT e abordagem MACBETH, metodologia desenvolvida por Carlos Bana e Costa (Bana e Costa; Oliveira, 2012), da mesma instituição portuguesa e bastante conhecido no Brasil. Por apresentarem não apenas um framework importante para análise de governança como uma proposta para o uso estratégico deste diagnóstico, os portugueses serão a base para esta análise. Além disso, são dados como referência pelo grupo da Fundação Getúlio Vargas usado como base para contextualizar o IEG-M como instrumento transformador do papel dos TCE’s no Brasil (Buta e Teixeira, 2020) e também importantes colaboradores no assunto na União Europeia, além de focarem o trabalho em projetoS parceiros entre poder público e iniciativa privada, pauta considerada importante desde o começo desta reflexão sobre boas práticas de gestão (Mendonça e Falcão, 2016; Fischer e Comini, 2012). Elaborou-se o seguinte quadro comparativo sobre o que entende-se por avaliação de resultado das políticas no sentido da governança em Draibe, NEPP, Ostrom e Cruz e Marques:

 

Diferentes concepções de análise de Governança

 

Draibe (2001)

NEPP (2005)

Ostrom (2011)

Kaufmann et al. (2010)

Cruz e Marques (2013)

 

Efetividade

Governança

Avalia. De Resultado

Governança

 

Efetividade social

Regras legais

Conformidade com valores

Força da lei

 

Capital social e satisfação

Voz e participação

Participação*

Voz e prestação de contas

 

Equidade fiscal

 

Efetividade institucional

Condição regulatória

Prestação de contas

Controle da corrupção

 

Sustententabilidade e reprod. institucional

 

Resiliência

Estabilidade política

 

Mudança e impactos

Condi de Implem

Equidade distribucional

Efetividade governamental

 

Eficiência Econômica

Regulação econômica

 

*Não vem explícita no quadro de Ostrom, mas é um pressuposto de sua análise


Como se pode observar, existem critérios que vem discriminados em um framework mas em outros vem junto com outro, mas apesar disso há uma correspondência entre eles para a análise de governança. Sendo assim, tomando-se a proposta de Cruz e Marques (2013) pode-se facilmente trazer questões dos outros. Um detalhe importante é que a questão econômica vem mais relacionada à regulação do que aos resultados propriamente ditos no frame aqui escolhido, o que permite uma avaliação dentro dos critérios. Isto porque os autores estão preocupados em observar a interação entre agentes públicos e privados em PPP’s, o que pode ser avaliado também dentro dos critérios de cada área do IEG-M, pois, como já foi dito no texto anterior, o índice brasileiro não aborda diretamente questões econômicas, pois perderia o foco da gestão pública municipal dada a dependência de políticas macroeconômicas neste quesito. Sendo assim, 6 aspectos serão analisados em cada um dos 7 indicadores do IEG-M:

 

1.       força da lei: conformidade com regras e controle da sociedade sobre este processo

2.       voz e prestação de contas: sociedade avalia resultados, tributação e investimentos

3.       controle da corrupção: capacidade institucional de julgar compromisso dos agentes

4.       estabilidade política: mecanismos de resiliência e adaptação

5.       efetividade governamental: capacidade de implementar políticas de realizar resultados

6.       regulação econômica: modo com que se relaciona com parceiros privados

 

Segue agora um panorama geral do processo de consolidação e revisão metodológica promovida pelo Indicon IRB em meados de 2018, que teve seus detalhes registrados no blog da rede, acessíveis até hoje.

 

iii) A consolidação do IEG-M em 2018 e seu aprofundamento em nível nacional

                Antes de partir para os próximos artigos, diretamente sobre os 7 indicadores do IEG-M, considera-se pertinente expor brevemente a revisão do IEG-M feita ao longo de 2018. Mais especificamente, tratar-se-á de algumas proposições colocadas no blog da Rede Indicon entre as reuniões técnicas de Brasília (7 e 8/5/2018) e Curitiba (2 a 4/7/2018). Nestes dois encontros foram feitos balanços sobre como agrupar e usar os indicadores em separado e questionamentos sobre cada pergunta dos questionários, sendo um momento de preparativos para um novo momento do índice, em que mesmo reconhecendo as diferenças regionais repensou-se seus critérios para uma maior padronização e futuras propostas de mudanças, que não ocorreram de forma contundente por parte do IRB (como inclusão de indicadores de assistência social e desenvolvimento econômico, este último adotado em separado por alguns Tribunais de Contas). Ou seja, muito além de uma revisão, foi feito um detalhamento sobre os critérios e uma internalização do significado da avaliação entre os participantes, potencializando a versatilidade do uso deste instrumento.

                Houve um cuidado em esmiuçar cada detalhe sobre o preenchimento de informações nas planilhas dos questionários, além de demonstrar como cada pergunta estava fundamentada em aspectos exigidos em lei sobre as competências municipais. Desde perguntas específicas até instrumentos como “matriz de planejamento”, “papéis de trabalho” e “matriz de achados” foram explicados e apontados seus fundamentos em orientações do TCU. Também foram disponibilizadas para a rede toda contribuições de diferentes Tribunais de contas estaduais em questões tidas como importantes como avaliação de conselhos municipais de educação e saúde, algo fundamental para avaliar a participação e a accountability vertical, e exemplos de cálculos dos subíndices. Apesar de o presente texto focar na construção de um framework analítico para este estudo, uma metodologia de análise, a compreensão desta metodologia de levantamento e organização de dados será fundamental para os seguintes. Em todo caso, daremos atenção ao que foi tratado na reunião de maio, cujo conteúdo foi descrito em três textos fundamentais: um sobre a validação dos municípios ao IEG-M, outro sobre o grau de satisfação dos TCE’s em relação às questões do índice e, finalmente, com um agrupamento temático dos 7 indicadores, que será comparada com os seis critérios de análise de governança definidos ao final da última sessão.

                Segundo o Texto para Discussão 3/2018 da Indicon, a validação dos questionários apresentaram, tanto o problema de falta de padronização quanto alto percentual de respostas alteradas após a validação. O primeiro problema foi um dos focos da atividade de revisão promovida em 2018 por parte do IRB, o que explica o esforço detalhista sobre cada questão e seu preenchimento nas planilhas e o uso de “matriz de planejamento”, “papéis de trabalho” e “matriz de achados”. Já em relação às alterações em respostas, foram criados grupos de trabalho para corrigir ambiguidades na redação das questões, apontadas como principais causas de alteração. Em todo caso, vale a pena observar quais estados fizeram validação e o quanto, como mostra a seguinte tabela:


Pode-se observar que em torno de 80% das inspeções foram feitas em SP e MG, o que provavelmente proporcionou uma melhor dinâmica de aprendizagem nos TCE’s destes Estados. Este processo de interação com os municípios se dá tanto na resposta deles quanto na averiguação dos tribunais, sendo possível assim certificarem-se sobre se estão no caminho certo. Um outro mecanismo de aprendizagem é a manifestação e opinião dos tribunais quanto à detalhes do índice e dos questionários. De todos os Tribunais de Contas estaduais, 17 compuseram a Rede Indicon em 2017/18 para amadurecer e aprimorar indicadores públicos, e destes, segundo o Texto para Discussão 2/2018, a maioria estava satisfeita em alguma medida com o apresentado pelos questionários, como mostra a tabela abaixo:


Apesar do retorno razoável, que estimula o aprimoramento, um outro dado mostra a necessidade de maior aprofundamento a respeito das questões feitas para a formulação dos indicadores: o número de respondentes que simplesmente não tinham opinião. Veja o quadro:

 


A maioria se abstém de posicionar-se, o que possivelmente denota pouco aprofundamento. Esta internalização e compreensão da utilidade do IEG-M, se acontece em meio às equipes dos TCE’s, é de se supor ser muito maior nos municípios, sinalizando a necessidade de aprimoramento da sinergia entre tribunais e prefeituras, principalmente na didática sobre usos e significados de cada ponto avaliado do índice: esta série é uma tentativa de encontrar caminhos para compreender detalhes a serem esclarecidos para as prefeituras, de modo a concretizar a função pedagógica do índice na difusão de boas práticas de gestão. Um primeiro exercício seria o de entender diferentes funções que um índice pode cumprir e onde se situa o IEG-M dentre os demais, e essa foi a pauta principal do Texto para Discussão 1/2018. Diferente de indicadores apenas sobre eficácia (que medem só o desempenho direto de um programa, seu desempenho) ou eficiência (que compara o desempenho com a despesa), o IEG-M mede o conjunto, com despesas e seus impactos diretos e indiretos, a efetividade. Sendo assim, é um ótimo instrumento para analisar governança e os resultados de todo o ciclo de implementação de uma política pública.

 

Conclusões

                Este foi o último texto preparatório antes de irmos diretamente a cada um dos 7 indicadores (i-Planejamento, i-Fiscal, i-Educ, i-Saúde, i-Amb, i-Cidade e i-Gov TI). Como foi dito, irá se buscar como cada indicador responde á questões de cada um dos 6 critérios de governança selecionados aqui (força da lei, voz e prestação de contas, controle da corrupção, estabilidade política, efetividade governamental e regulação econômica), encontrados dentro do tradicional framework dos “Ciclos de Políticas Públicas” em suas versões que buscam solucionar a falta de diálogo com a sociedade, especialmente do NEPP, e modelos de governança, como os trazidos pelo trabalho do grupo da FGV. Nunca é demais lembrar que nesta série estão sendo feitos apenas esboços exploratórios sobre paradigmas teóricos e características do IEG-M, uma preparação para trabalhos mais elaborados a partir do amadurecimento das opções trazidas à publico através desta iniciativa. Acredita-se que a partir daqui temos um objeto claro, com uma questão clara que gira em torno de como promover a aprendizagem de boas práticas de gestão e conseguir apoio político através disso, única forma de garantir vitória eleitoral de candidatos preocupados com a qualidade da democracia e superação de heranças como clientelismo, corrupção e pouco zelo com a qualidade do serviço público.

 

Na medida do impossível, um ótimo março para todos!

 

Marcos Rehder Batista, sociólogo, doutorando em Desenvolvimento Econômico no Instituto de Economia/Unicamp, pesquisador do NEA/IE-Unicamp e do SP in Natura Lab/FCA-Unicamp, líder do projeto RB Sustentabilidade 4.0. E-mail: marcosrehder@gmail.com

 

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