Auditoria de resultados e governança pública V: i-Fiscal
Fonte: Contador para Gestão Fiscal Publica Niterói - Gestões Fiscais - Contabilidade Carioca
Auditoria de resultados e governança
pública V: i-Fiscal
Marcos Rehder Batista
Junto com o i-Planejamento, este
é o indicador do IEG-M que mais se aproxima da atividade fim dos Tribunais de
Contas, pois está centrado nas condições que a prefeitura tem para alinhar projetos
e equilíbrio orçamentário. Ao mesmo tempo é um aprofundamento de funções das
quais já se falou no esboço sobre o “i-Plan” como parte do planejamento, é uma
área anterior à tudo, pois sem orçamento nenhum projeto pode ser planejado.
Trata-se de uma parte técnica da gestão pública, a âncora de toda a governança,
mas que em si dá muito pouco espaço para a participação direta da população,
sendo que sua interface com a sociedade dá-se basicamente na discussão dos
Planos Plurianuais (PPA’s) Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDO’s), Leis
Orçamentárias Anuais (LOA’s), que acontecem no poder legislativo.
Mesmo
sendo tratada aqui como um “anexo” do planejamento, dado que neste escopo a
gestão pública está sendo vista em seu aspecto de governança de agentes políticos,
econômicos e sociais, o I-Fiscal será contextualizado dentro de uma reflexão
sobre o processo que leva à aprovação dos documentos orçamentários. Inclusive,
serão expostas questões que poderiam ter vindo no texto anterior. Porém, primeiro
serão apresentadas as concepções do indicador feita pelo Instituto Rui Barbosa
e onde o IEG-M foi idealizado, no TCE-SP, pois o I-Fiscal é o tema deste
artigo, e as demais questões vem como contextualização.
O I-Fiscal
Segundo a primeira edição do IEG-M,
de 2015 sobre o exercício 2014, o i-Fiscal “mede o resultado da gestão fiscal
por meio da análise da execução financeira e orçamentária, das decisões em
relação à aplicação de recursos vinculados, da transparência da administração
municipal e da obediência aos limites estabelecidos pela Lei de
Responsabilidade Fiscal.” (TCE SP, 2015; p.9). Em outras palavras, existem 4
dimensões: análise financeira e orçamentária, a accountability propriamente
dita; a transparência, relativa à possibilidade de avaliação dos procedimentos
na execução das políticas e; a obediência legal, a conformidade com as normas
de responsabilidade. Dentre os princípios de governança que estão sendo usados
aqui como referência, a descrição do índice deixa bem claro que, dos 6
critérios de governança usados neste programa de trabalho (força da lei, voz e
prestação de contas, controle da corrupção, estabilidade política, efetividade
governamental e regulação normativa econômica), o i-Fiscal dá conta de 4: força
da lei, voz e prestação de contas (da prestação de contas), controle da
corrupção e regulação normativa econômica (Kaufmann et al, 2010; Cruz e Marques,
2013). Ele nada diz sobre o que deve ser feito e como deve ser decidido, mas
diz tudo sobre como as cosias devem ser feitas.
Envolve todas as áreas da
administração municipal, dos gastos possíveis aos obrigatórios em saúde,
educação, do controle dos repasses federais e estaduais, controle da dívida e
pagamento de precatórios. Segundo o primeiro manual do IEG-M, de 2014, aborda 12
tópicos (TCE SP, 2014), sendo que sua descrição continua a mesma no último
manual publicado (TCE SP, 2020):
1.
Análise da Receita (execução
orçamentária);
2.
Análise da Despesa (execução
orçamentária);
3.
Análise da execução orçamentária;
4.
Análise dos Restos a Pagar – até o
bimestre (dívida
5.
flutuante);
6.
Despesas com Pessoal – Poder
Executivo;
7.
Despesa com Pessoal - Poder
Legislativo;
8.
Apuração do resultado financeiro
(superávit/déficit);
9.
Apuração da dívida fundada
(aumento/redução);
10.
Apuração dos pagamentos dos
precatórios;
11.
Repasse de duodécimos às Câmaras;
12.
Transparência: atas de elaboração,
avaliação e aprovação, pareceres e publicações realizadas.
Pode-se
dizer que no relatório nacional do IEG-M feito pelo Instituto Rui Barbosa
também não houve nenhuma alteração considerável (IRB, 2016), e no último manual
do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo apenas houveram algumas
especificações sobre os temas que já vinham sendo abordados, com uma ampliação quantitativa
dos tópicos.
Na
próxima sessão deste texto serão trazidas algumas reflexões sobre a
accoutability, já trabalha nesta série dentro da distinção entre accoutability
horizontal (feita por órgãos públicos) e vertical (feita pela sociedade quando
há transparência). Este processo, ancorado no esclarecimento dos resultados da administração
e medido em muito pela gestão fiscal, pode ser visto muito além da conformidade
com a lei ou avaliação de resultados, firmando o estabelecimento de uma relação
de confiança, não sendo uma atitude ou dos órgãos e gestores públicos ou dos
cidadãos, mas sim uma relação, uma conexão entre as partes de uma governança
democrática em sua essência.
Accountability:
da inquisição à confiança, à conexão
Na medida em que se optou nesta
série de pequenas reflexões sobre o Índice de Efetividade da Gestão Municipal
por enfatizar na governança entre os vários agentes participantes de uma gestão
cidadã, a prestação de contas, as questões ficais e a própria execução técnica do
orçamento foram questões realmente postas em um segundo plano; foi uma opção, o
que não significa que não seja uma carência. Uma carência, inclusive que sem os
devidos cuidados pode sim comprometer o próprio objetivo, pois sem consciência
dos limites e responsabilidades não há participação real da sociedade, apenas
acesso à algumas informações apresentadas de modo esteticamente agradável, pois
ao não conhecer limites, responsabilidades e direitos ninguém exerce poder
algum, fala-se apenas em impressões. Accoutability pode ser muito mais que apenas
um processo em que a sociedade ou uma auditoria acessa e julga as ações dos gestores;
não é só a sociedade que atribui responsabilidade aos homens e mulheres do
setor público, eles mesmos podem assumir a responsabilidade. Aliás, quando
estão convencidos de que fizeram um bom trabalho, estes devem fazer questão de
apresentar os detalhes de suas ações e resultados, e este é o caminho para o
fortalecimento político das grandes lideranças, é o começo de toda
capitalização política das boas práticas de gestão, e por isso este conceito
tão controverso carece de constante esclarecimento, para ensinar ou lembrar.
Uma reflexão fundamental acerca
do assunto foi feita por Fernandes e Teixeira em texto recente sobre as
diferentes formas de atuação dos órgãos de auditoria externa pública sobre os
municípios (Fernandes e Teixeira, 2020). Os autores apontam para o problema da
imprecisão conceitual do termo “accoutnability” em sua tradução para a língua portuguesa,
e as dificuldades operacionais decorrentes disto. Quando alguns o autores
definem como “prestação de contas, a transparência e a
participação dos cidadãos” ou “transparência das informações governamentais e
prestação de conta” (idem, p.458) eles colocam dentro de um mesmo critério de
governança pública, “voz e prestação e contas”, correlacionando acesso à
informação, julgamento e participação. Entretanto, este ato de auto-responsabilização
(com decorrentes ônus e bônus) por parte do político ao expor e dar sentido aos
resultados programáticos e fiscais do exercício de seu mandato foge ao
conceito, a grande oportunidade de mostrar quem realmente são os gigantes e
quem apenas lhes sobem aos ombros. Este lapso conceitual é o que leva os
autores a conceber accoutability nos mesmos termos de Johan Olsen, enquanto ato
de “ser responsável perante alguém, sendo obrigado a explicar e justificar a
ação – por exemplo, como mandatos e contratos foram tratados, como a autoridade
e os recursos foram aplicados, e com quais resultados” (Olsen, 2018, p. 70
apud Fernandes e Teixeira, 2020, p.459).
A
vantagem em assumir esta noção de accountability está exatamente no fato de ela
tirar do político a passividade no momento da avaliação de seu trabalho. Um
líder que domina as planilhas e as tornam parte do espetáculo, torna a si próprio
o advogado de seus feitos e, com isso, é em seu rosto que reflete a luz vista
pela plateia, seu júri. Neste sentido, não é apenas uma avaliação, mas uma
postura, um momento que chama a sociedade à participação na medida em atrai e
encanta, mobiliza e inspira. E, enquanto matriz a partir da qual se controla
tudo no planejamento de uma gestão pública, o controle fiscal é a pedra angular
a partir da qual tudo se mantém de pé... ou não. É a partir dele também que a
confiança das pessoas acontece ou se desmancha, pois sem ele os projetos não
acabam, o sucesso dura pouco.
Estas
palavras, talvez com algum exagero, precisavam ser postas como combate à ideia
de que controle fiscal é limitação, proibição ou impedimento para que se faça
coisas ditas importantes: ele não é proibição, é condição, pois sem dinheiro em
caixa nãos e faz nada, e sem seguir as suas regras geralmente troca-se o
essencial pelo supérfluo. Este texto citado acima tem várias outras construções
importantes para se entender este ponto chave da análise de governança, que
alia prestação e contas e interação entre sociedade política e sociedade civil,
que serão abordadas num momento oportuno.
O i-Fiscal, Governança Pública e os
ODS’s
Seguindo
os critérios governança pública já usados para descrever os diferentes
indicadores do IEG-M, vale recordar as 6 dimensões apontadas pelo Banco Mundial
(Kaufmann
et al, 2010; Cruz e Marques, 2013):
1.
força da lei:
conformidade com regras e controle da sociedade sobre este processo
2.
voz e prestação de contas: sociedade
avalia resultados, tributação e investimentos
3.
controle da corrupção:
capacidade institucional de julgar compromisso dos agentes
4.
estabilidade política:
mecanismos de resiliência e adaptação
5.
efetividade governamental:
capacidade de implementar políticas de realizar resultados
6.
regulação normativa econômica: modo com
que se relaciona com parceiros privados
Força
da lei: conformidade com regras e controle da sociedade sobre este processo
Como era de se esperar, existem
muitas questões sobre a conformidade com a Lei de Responsabilidade Fiscal (questões
de 4a-c) e relativas à encargos e repasses legais (7-9), para avaliar como a
gestão segue as regras orientadas para tornar sua administração mais efetiva.
Na verdade, todas as questões estão de alguma forma relacionadas ou à esta
conformidade ou à efetividade tributária do município. Este quesito pode ser
visto como um balanço da conformidade com as leis.
Voz
e prestação de contas: sociedade avalia resultados, tributação e investimentos
Este critério definitivamente
não é o foco desta área técnica da administração, tal que não são tratados
mecanismos de participação nas decisões da execução dos recursos e ativos do poder
público, porém também fala-se pouco da participação na promoção de equidade
fiscal e distribucional, o que é algo a se pensar. Em todo caso, existe uma questão sobre o
repasse de recursos para a Câmara dos Vereadores (questão 6), o que de alguma
forma é usado para aproximar poder público da população. É bem verdade que no
i-Planejamento esta parte da participação é bastante acentuada, e boa parte das
lacunas que estão sendo apontadas estão satisfeitas lá. Todavia existem
questões específicas sobre gestão fiscal que podem e devem estar submetidas ao
menos à consulta: como foi expresso ao final da sessão anterior, muito além de
julgamento político, é uma oportunidade para obter apoio.
Controle
da corrupção: capacidade institucional de julgar compromisso dos agentes
É difícil apontar uma ou outra
questão à este respeito no i-Fiscal, dado que é nestes números que aparecem as
distorções que podem apontar para práticas ilícitas na gestão pública. Deste
modo, pode-se considerar todo o conjunto deste indicador como voltado para o
combate à corrupção, à transparência nas contas.
Estabilidade
política: mecanismos de resiliência e adaptação
Entendendo “estabilidade”, “adaptação”
e “resiliência” como mecanismos de aprendizagem, não existe esta preocupação em
relação a aprimoramento e qualificação de equipe neste quesito contábil, o que
realmente é um problema. Não se pode confundir planejamento e gestão fiscal, e
existem elementos específicos da área que precisam ser mais aprofundados e
cobrados e, principalmente, ensinados nas prefeituras. Apenas uma equipe sob
formação continuada consegue se adaptar às novas realidades que surgem
diariamente.
Efetividade
governamental: capacidade de implementar políticas de realizar resultados
Neste critério aloquei as
questões que dizem respeito ao balando entre receitas e despesas (1 a 3, apesar
que de alguma forma todas as questões tratam disso), capacidade de pagamento
(8a e b) e aprimoramento da capacidade de arrecadação (10-14). Ou seja, trata do
ajuste fiscal propriamente dito, que é a condição básica para capacitar uma
administração à investir e empreender políticas públicas. É aqui que os demais
critérios se encontram para potencializar todos os outros indicadores que
compõe o Índice de Efetividade da Gestão Municipal.
Regulação
normativa econômica: modo com que se relaciona com parceiros privados
Mesmo com boa parte das questões
remetendo ou à tributação sobre agentes privados (cidadãos, parceiros) ou
investimentos, gastos com insumos, serviços e bens de consumo comprados da
sociedade e assim funcionando como restrições e incentivos ao desenvolvimento
econômico, pode-se dizer que um especificamente fala desta relação com o
privado: o pagamento de precatórios (questão 5). Esta questão fala de dívidas
do poder público perante o cidadão, sendo uma questão crítica desta relação, e
por isso foi posta em especial neste critério de governança.
Considerações
finais
É muito louvável esta separação
entre o planejamento e a gestão fiscal, pois especifica-se um ponto de
avaliação apenas sobre como se arrecada e o que há de disponível para investir
nos projetos estruturados pelo setor de planejamento. Provavelmente os desafios
que foram postos aqui para este ou aquele quesito são sugestões para
aprimoramento das gestões, e em alguma medida estão satisfeitos no
i-Planejamento. Confesso não ter familiaridade com estas questões, tanto que
questionamentos aos meus apontamentos certamente devem ter mais pesos do que
eles próprios.
Os artigos publicados nesta
série até agora todos giravam em torno de algum planejamento: primeiro do
planejamento deste estudo exploratório, depois dos critérios do IEG-M para
analisar aspectos cruciais no planejamento de todas as áreas da gestão. Os
próximos serão sobre áreas de investimento público de forma específica, como saúde,
educação e tecnologia, tal que trarão mais apontamentos setoriais e menos
reflexões sobre a concepção de governança pública propriamente dita, pois estes
critérios já estão dados. Por isso, serão mais curtos e descritivos, o que
aumenta o senso prático deste desafio.
Marcos
Rehder Batista, sociólogo, doutorando em Desenvolvimento Econômico no Instituto
de Economia/Unicamp, pesquisador do NEA/IE-Unicamp e do SP in Natura
Lab/FCA-Unicamp, líder do projeto RB Sustentabilidade 4.0. E-mail: marcosrehder@gmail.com
Referências
bibliográficas
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FERNANDES, G.A.A.; TEIXEIRA, M.A.C. (2020).
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< https://www.tce.sp.gov.br/sites/default/files/publicacoes/manual-iegm-tcesp_0_0.pdf > , acessado em 08/04/2021.
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Disponível em <https://www4.tce.sp.gov.br/sites/tcesp/files/downloads/anuario_iegm-tcesp-2015.pdf>,
acessado em 08/04/2021
TCE SP (2020) Índice de Efetividade da
Gestão Municipal: Manual 2021.
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